Ambição ou cooperação?
Por Daniel Medeiros
Ser ambicioso é natural, é o que todos dizem. Já no século XVI, o mestre florentino Nicolau Maquiavel já afirmava, categórico: “os homens quando não são forçados a lutar por necessidade, lutam por ambição.” Mark Twain, o grande escritor norte americano do século XIX, lembrava, de braços dados com a cultura do progresso e da prosperidade de seu país: “mantenha-se afastado das pessoas que tentam depreciar sua ambição. Pessoas pequenas sempre fazem isso, mas as realmente grandes fazem você sentir que você, também, pode se tornar grande.”
No entanto, quando estudamos a história da espécie humana, verificamos que não foi exatamente a ambição que garantiu a nossa sobrevivência no ambiente adverso – e sim o espírito comunitário. Durante os milhares e milhares de anos que antecederam nosso mundo contemporâneo, o trabalho em grupo, a divisão de tarefas por gênero e idade, os esforços pelos projetos comuns, o ensinamento e o aprendizado e, fundamentalmente, as relações de auxílio entre os membros da mesma tribo, clã, família, foram as formas de produção mais eficientes e duradouras. O professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia, Leonard Mlodinow, afirma: “na savana, vivíamos em bandos. E esses bandos eram competitivos entre si: há aqueles que estão do seu lado e os que estão contra você. Ou você come ou ele come. Então o espírito de equipe foi algo muito importante na evolução humana para garantir a nossa sobrevivência e a do nosso grupo“.
Como nossa história foi marcada por invasões, violência e exploração extrema entre os seres humanos, embotamos facilmente essa máxima da sobrevivência: “entre os membros da tribo, ninguém fica pra trás”. Em vez de apontar o dedo acusador ao fraco, a história da humanidade ensina que a adaptação a funções diferentes foi a receita de sucesso de muitos grupos. Não serve para agricultor, vira pastor; não é pastor, vai vender coisas na feira; não sabe vender, ajuda a trazer água do poço. E assim por diante. Aos trancos e barrancos, adaptamo-nos às cruezas da vida, graças a esta rede de proteção que compartilhava os avanços na domesticação do mundo.
Quando olhamos o mundo de hoje, com suas megalópoles e sua economia desenfreada, não parece ser possível reconhecer esses fundamentos da sobrevivência humana. No entanto, sabemos que sem pesquisa compartilhada, discussões em grupo, desenvolvimento de ideias em rede, resiliência, comunicação, empatia e solidariedade, poucas das coisas que nos fascinam nos dias de hoje teriam sido inventadas ou aperfeiçoadas. É difícil dizer isso para uma criança que quer ser a inventora, o herói, a reconhecida; ou mesmo para pais que querem (e ensinam) o filho brilhando sozinho, no alto do pódio, o tempo todo. No entanto, a regra número um da Educação do futuro é: compartilhe ideias e projetos. O mundo e tudo o que há nele só foi feito por um único “cara” porque ele era “O Cara”. Mas eu, você, seu filho, ninguém é.
Quando pensamos no trabalhador no futuro, há ainda outro desafio: imaginarmos alguém que seja capaz não somente de interagir com pessoas, mas com máquinas inteligentes. A ambição, no seu sentido estrito, de alcançar um lugar no qual ninguém mais esteve, torna-se, em face dessa mudança da inserção da Inteligência Artificial nas nossas vidas, cada vez mais irrelevante como ideia concreta. As conquistas já no presente e, certamente, no futuro próximo, serão obras de cada vez mais mãos, e nem todas serão humanas.
Uma pergunta que há pouco tempo parecia conversa de apaixonados por ficção científica, torna-se cada vez mais real e urgente: como será compartilhar uma conquista pessoal com um andróide? Como será ver seu nome abaixo de um código de um programa elaborado pelo esforço de milhares de pessoas? Pois é o que já acontece e o que se tornará cada vez mais comum em muito pouco tempo. A despeito da distância brutal entre a pedra lascada e a nanotecnologia, os princípios que fundam o desenvolvimento da relação entre os seres humanos e o mundo continua a ser pautada pela mesma regra: onde não há cooperação, há deserto.
É fato que o que chamamos hoje de sociedade competitiva, individualista, sem sentimentos, não parece corresponder ao que busco defender nesse breve texto. E de fato não corresponde. Trata-se de dinâmicas desse processo de ajustes a uma sociedade fluida, volátil, de funções e papéis sociais incertos e de entendimento muito complexo. Nossa perplexidade, e também (principalmente) nosso medo, é que provocam essa reação de encolhimento, de luta ferrenha de um lugar para chamar de seu, pelo status, pelo reconhecimento a qualquer custo. Mas é preciso dizer que essas posturas são resultado de um erro de avaliação que o tempo irá corrigir, principalmente se não esquecermos as principais razões que nos trouxeram, desde os primórdios, até aqui: espírito comunitário; soluções coletivas; apoio mútuo. Qualquer solução para o futuro do trabalho implica repensar nossa relação com as pessoas dentro de uma perspectiva que não é a do “farinha pouca meu pirão primeiro”, mas a do “lugar que almoçam quatro, almoçam seis”. E bota mais água no feijão.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica pela UFPR, consultor de Conteúdos em Humanidades e professor no Curso Positivo