As décadas de 20
Por Daniel Medeiros
Em 1720, um jovem português do Minho, radicado na região das minas gerais com milhares de outros em busca de uma vida melhor, indignado com a cobrança abusiva de impostos, incitou uma revolta contra as chamadas casas de fundição, que obrigavam os mineradores a entregar o ouro para ser derretido e cobrado o quinto, “quinto dos infernos”, como era comum dizer. Seu nome era Filipe dos Santos e lembramos dele pela forma cruel e brutal pela qual foi punido pela insolência de levantar a voz contra as autoridades. Seus braços e pernas foram amarrados a quatro cavalos e seu corpo foi despedaçado diante do olhar atônito de seus conhecidos da então pequena vila de Vila Rica. Era o preço da rebeldia, da coragem de dizer que ninguém fazia nada pelos colonos e que a riqueza que ali se produzia só alimentava a ambição de poucos enquanto todos os outros ficavam à sua própria sorte. Ou azar.
Noutra década de 20, agora em 1820, jovens liberais portugueses amotinaram-se contra a ingerência estrangeira e contra a situação estranha de serem uma monarquia de rei ausente, já que D. João estava no Brasil há mais de uma década. O movimento começou na cidade do Porto e se espalhou pelo pequeno país, instituindo uma Monarquia Parlamentar, constitucional, nos moldes da Inglaterra. Eram os últimos ecos dos tempos revolucionários europeus, que tiveram na Revolução Francesa seus melhores dias. A Revolução do Porto, como ficou conhecida, foi o passo decisivo para o desenrolar de acontecimentos que levaram o Brasil à independência, pelas mãos do jovem um tanto afoito e inexperiente D. Pedro de Alcântara.
Mas a mais agitada década de vinte de todas foi a do século XX. Os jovens dessa época eram empolgadíssimos e queriam mudanças, na esteira da indústria, dos automóveis, da eletricidade, do crescimento urbano. Queriam buzinas e fumaça, queriam progresso e queriam ter uma identidade mais definida de quem somos nós, afinal, os brasileiros. Os inimigos eram os casacas, os passadistas, os arautos do atraso, com suas políticas de votos contados e com seus versos de rimas empoladas e sonolentas.
Alguns jovens pegaram em armas e com armas quiseram desentortar o Brasil. Outros pegaram as penas e com as penas queriam reescrever o Brasil. De tudo isso ficou a imagem borrada de um país que esquece Filipe dos Santos, comemora a semana da Pátria achando que D. Pedro era algum tipo de general e nem sabe que os jovens com armas dos anos vinte foram os que, quarenta anos depois, tomaram o poder e nos afundaram na mais longa ditadura da história. Com o apoio de muitos dos rapazes das penas, embora, felizmente, nem todos.
Em julho de 1925 saiu o primeiro dos três números da revista modernista mineira, mineiramente chamada apenas de “A Revista”. No manifesto de abertura, sem assinatura, mas escrito por um já conhecido poeta e cronista de Itabira que ainda não lançara livros, dizia: “No Brasil, ninguém quer obedecer (…) Há mil pastores para uma só ovelha. Por isso mesmo, as paixões ocupam o lugar das ideias, e , em vez de se discutirem princípios, discutem-se homens. Fulano está no governo, pois então vamos derrubar Fulano! E zaz! Metralhadoras, canhões, regimentos inteiros em atividade…”
Eram os idos do presidente mineiro Artur Bernardes e o país vivia o seu mais longo período de Estado de Sítio. Os outros jovens, os armados, depois de duas tentativas fracassadas, começavam uma marcha pelo interior tentando levantar o povo contra os casacas, os carcomidos, os passadistas. O futuro não podia esperar. A Nação precisava ser salva. Por Filipe dos Santos, por Tiradentes, diziam, empolgados. Acabaram criando gosto por essa coisa de intervir e colocar ordem e não pararam mais. Filipe dos Santos foi pra galeria dos “subversivos” e Tiradentes – que era militar – e D. Pedro foram entronizados na galeria dos “amantes da Pátria”.
O manifesto de Drummond, chamado “Para os céticos”, termina assim: “Contra esse opressivo estado de coisas é que a mocidade brasileira procura e deve reagir, utilizando as suas puras reservas de espírito e coração. Ao Brasil desorientado e neurótico de até agora, oponhamos o Brasil laborioso e prudente que a civilização está a exigir de nós. Sem vacilação, como sem ostentação. É uma obra de refinamento interior, que só os meios pacíficos do jornal, da tribuna e da cátedra poderão veicular. Depois da destruição do jugo colonial e do jugo escravagista, e do advento da forma republicana, parecia que nada mais havia a fazer senão cruzar os braços. Engano. Resta- nos humanizar o Brasil.”
É fato que Drummond trabalhou com o ditador Vargas e deu uns pitacos animados pela deposição de Jango. Não ficou de braços cruzados. Mas depois teve a dignidade de se redimir. Humanizou-se. Resta o Brasil.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.