Um capitão contra a barbárie
Por Daniel Medeiros
Para muito além dos “pãos ou pães”, há capitães e capitães. Um deles se chamava Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho. Paraquedista com centenas de saltos e milhares de horas de voo, respeitado por seus colegas, dono de quatro medalhas por bravura, foi um dos fundadores do ParaSar, especializado em missões humanitárias. Ao longo da carreira, tornou-se amigo de índios e indigenistas. Sérgio era um militar que honrava a farda e a tarefa de proteção e segurança dos cidadãos que a profissão impõe. Mas, sem que pudesse desconfiar, foi numa manhã de outono, em 1968, que ele teve de enfrentar o seu maior desafio como militar. Convocado para uma reunião na sede do ministério da Aeronáutica, ouviu do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, chefe do gabinete do ministro Márcio de Souza e Mello, uma proposta para “acabar com o avanço do comunismo no Brasil”. A ideia era a seguinte: o grupo do qual Sérgio fazia parte realizaria uma série de atentados que seriam atribuídos aos comunistas, criando assim a justificativa necessária para um endurecimento do regime. “Em nome da Revolução e do Brasil”, enfatizaria o brigadeiro.
Trinta e sete pessoas presentes nesse encontro testemunharam essa proposta, que incluía a explosão de uma represa e de um gasômetro, em plena hora de pico, para provocar a morte de cerca de cem mil pessoas. Ninguém duvidaria que seriam os comunistas os autores dessa tragédia, imaginou o brigadeiro. Afinal, comunistas não são e nunca foram pessoas de bem. Burnier tentou seduzir o capitão com a promessa de uma quinta medalha, esquecendo que as quatro que ele possuía tinham sido recebidas por atos de coragem, ao colocar em risco a própria vida no resgate de outras pessoas. O capitão recusou a tarefa e ainda a chamou de imoral. Lembrou que o que faz uma missão ser cumprida por um militar não é o fato de ser determinada por um superior, mas sim pela natureza dela. E essa missão tinha por natureza um crime hediondo.
Sérgio Macaco, como era conhecido, sofreu as consequências de sua escolha e de seu ato. Foi transferido, processado, preso e, por fim, exonerado das forças armadas, aos 37 anos. Viu sua brilhante carreira militar ser interrompida porque agiu como um militar deve agir. E, graças a isso, conseguiu impedir o plano de morticínio de civis inocentes. A história foi parar na imprensa e o brigadeiro nunca admitiu que a reunião tenha ocorrido, apesar das dezenas de testemunhas. No fim da primavera daquele ano veio o AI-5, a imprensa foi calada e o nome do capitão Sérgio virou uma espécie de anátema nos quartéis. Ele era o espírito a ser evitado. Outros capitães surgiram, moldados pela forma do brigadeiro Burnier e seus iguais.
Com a redemocratização, a história do ato heróico do capitão Sérgio voltou à tona e, depois de muitas idas e vindas, em 1992, o Supremo Tribunal Federal decidiu que uma “injustiça” havia sido cometida e que a carreira do capitão tinha sido “prejudicada”. Por isso, ele deveria ser reintegrado aos quadros das Forças Armadas, com a patente de brigadeiro. Informado da decisão, o ministro da Aeronáutica ignorou o STF e não cumpriu a determinação. Eram os tempos do impeachment de Collor e o país vivia as dores do parto de uma Democracia que não havia tido a sabedoria de expurgar de si os germes infecciosos da ditadura que ainda a habitavam. Somente dois anos depois, em 1994, o então presidente Itamar Franco assinou a reintegração do capitão que evitou o que seria o maior crime da história do Brasil (até então). Itamar devolveu os direitos usurpados de Sérgio Ribeiro no dia 11 de fevereiro, seis dias depois dele ter morrido de um câncer no estômago.
A injustiça, mais uma vez, predominou. Só a memória, essa bandeira de luta, frágil mas permanente, permite-nos lembrar desses capitães que evitaram morticínios, em vez de os protagonizarem.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros