A influência das mídias digitais na saúde mental dos adolescentes: reflexões a partir da série ‘Adolescência’

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A adolescência é uma fase marcada por intensas transformações físicas, emocionais e sociais, nas quais os jovens buscam compreender a própria identidade e estabelecer conexões significativas com o mundo ao seu redor. Em tempos modernos, as mídias digitais desempenham um papel central nesse processo, oferecendo tanto oportunidades quanto riscos ao desenvolvimento psíquico e social. Para muitos adolescentes, as redes sociais não são apenas um espaço de convivência, mas um refúgio emocional e uma plataforma para construir e expressar suas identidades. É nesse contexto que surge um delicado paradoxo: ao mesmo tempo em que as mídias digitais proporcionam um espaço para expressão e conexão, também podem desencadear processos de isolamento, radicalização e prejuízos à saúde mental.

A série da Netflix ‘Adolescência’ provoca uma reflexão contundente sobre os impactos da radicalização e do uso problemático das redes sociais entre jovens. Para entender melhor esse processo, podemos nos basear no livro ‘Handbook of Adolescent Digital Media Use and Mental Health’, organizado por Nesi, Telzer e Prinstein (2022), que apresenta uma análise teórica aprofundada sobre como as plataformas digitais podem influenciar a saúde mental dos adolescentes. A convergência entre a ficção e a realidade evidencia como os adolescentes podem ser tragados por dinâmicas digitais que moldam identidades frágeis e em formação.

O livro explora como as mídias digitais influenciam a formação identitária por meio de processos psicológicos fundamentais: introspecção, narrativa pessoal e diálogo. A introspecção, que deveria ser um exercício de autoconhecimento, torna-se nas redes sociais, muitas vezes, um ciclo de ruminação e reforço de pensamentos negativos, especialmente quando realizada em espaços digitais permeados por discursos extremistas. Fóruns radicais e comunidades fechadas reforçam preconceitos e ampliam sentimentos de revolta e inadequação, validando percepções distorcidas e intensificando emoções negativas. A narrativa pessoal, por sua vez, envolve a construção de histórias que representam a forma como os jovens se percebem e se apresentam ao mundo. Contudo, quando essa expressão depende excessivamente de curtidas, comentários e validações digitais, há o risco de consolidar identidades frágeis e suscetíveis à manipulação externa. O diálogo digital é um espaço para o confronto de ideias e a construção de perspectivas diversas. No entanto, muitas vezes ele se transforma em bolhas de opinião e câmaras de eco que reforçam convicções perigosas, reduzindo a capacidade de empatia e comprometendo o desenvolvimento saudável da identidade.

A série ‘Adolescência’ traz à tona a jornada de Jamie Miller, um adolescente que, ao enfrentar o isolamento social e o bullying, busca refúgio nas redes digitais. No entanto, em vez de encontrar suporte, ele se depara com conteúdos que reforçam uma masculinidade tóxica e discursos de ódio, levando-o a um processo de radicalização. Uma cena mostra Jamie criando um diário digital onde compartilha pensamentos sombrios, expressando sua frustração e seu desejo de aceitação. A presença constante de mensagens extremistas distorce sua capacidade de reflexão crítica e alimenta um senso de injustiça e ressentimento. A criação de vídeos e textos em fóruns radicais reforça uma identidade negativa e fortalece um ciclo de ódio e isolamento, enquanto o contato com colegas e amigos se torna cada vez mais distante e conflituoso.

Esse processo reflete diretamente as teorias discutidas no livro, mostrando como o diálogo digital, quando restrito a bolhas de opinião, se converte em um ambiente de eco que reforça convicções perigosas e limita a empatia. O ambiente digital se torna um terreno fértil para a radicalização, onde as emoções são manipuladas por discursos polarizados e narrativas agressivas. No entanto, a realidade mostrada na série não é apenas um alerta sobre os perigos das mídias digitais, mas também uma reflexão sobre a falta de apoio emocional e intervenções adequadas que poderiam ter evitado o aprofundamento do sofrimento de Jamie, tanto em casa, quanto na escola e nos lugares da comunidade frequentado pelo jovem.

Para profissionais da saúde mental, pediatras e educadores, a análise conjunta da série e do livro evidencia a urgência de criar estratégias que favoreçam o uso responsável das mídias digitais pelos adolescentes. Isso inclui fomentar discussões abertas com jovens e suas famílias sobre os riscos e as armadilhas emocionais das redes sociais, incentivando práticas que valorizem a autenticidade e o senso crítico. Também é fundamental compreender os sinais de isolamento e comportamentos radicais como possíveis manifestações de um processo de vulnerabilidade emocional agravada pelas interações digitais.

Assim, somos todos desafiados a repensarmos o papel das mídias digitais na vida dos adolescentes, enfatizando que a tecnologia, em si, não é um vilão ou uma solução mágica, mas um recurso que precisa ser compreendido e manejado com cautela. Para mitigar os danos e potencializar os benefícios, é essencial que educadores, pais e profissionais de saúde promovam o diálogo aberto, a escuta ativa e o apoio emocional, para que as experiências digitais possam ser aproveitadas de maneira positiva e segura.

Texto produzido pela pediatra Bianca Seixas Soares Sgambatti, do Departamento de Segurança da Criança e do Adolescente da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP)

(Foto: internet).

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