Empréstimo para pagar dívida é solução? Economista alerta sobre as armadilhas do crédito e superendividamento
Pesquisa revela aumento no endividamento das famílias. Cartões, empréstimos e apostas virtuais lideram as causas

O aumento do custo de vida, o acesso ao crédito e o avanço de dívidas com apostas e jogos virtuais estão entre os fatores que explicam o endividamento recorde de 77,6% das famílias brasileiras em 2025. O impacto financeiro na população é comprovado pela Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, divulgada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC). Marcelo Valle, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (CEUB), explica que a combinação entre falta de educação financeira e crédito fácil leva muitas famílias a se enrolarem com dívidas impagáveis e aponta caminhos para sair dessa situação.
Eis entrevista, na íntegra:
O que levou tantas pessoas a se endividarem? Quais são os principais “vilões” do orçamento doméstico?
MV: Diversos fatores contribuem para o atual endividamento. Um dos principais é a facilidade cada vez maior de acesso ao crédito: muitas pessoas têm dois, três ou até mais cartões, além de diversas linhas de financiamento. O problema é que boa parte da população nunca teve uma formação sólida em educação financeira e acaba assumindo compromissos sem ter real noção do impacto no orçamento.
Além disso, as despesas essenciais pesam cada vez mais: alimentos, tarifas públicas, impostos, combustível e mensalidades escolares sofreram reajustes significativos. E um fator recente, mas bastante preocupante, é o aumento do endividamento com jogos de azar e apostas virtuais, que tem levado famílias inteiras à bancarrota.
Quais os riscos de pegar empréstimos para quitar dívidas antigas?
MV: O principal risco é continuar alimentando o ciclo do endividamento. Trocar uma dívida antiga por outra nova só faz sentido se o novo empréstimo tiver juros mais baixos e um prazo que permita melhor organização financeira. Se a pessoa não fizer mudanças estruturais, como reduzir despesas e reavaliar o padrão de consumo, o empréstimo vira apenas mais um compromisso, adiando o problema em vez de resolvê-lo.
Quais são os primeiros passos que alguém endividado deve tomar para organizar as finanças e sair do vermelho?
MV: O primeiro passo é ter clareza do tamanho da dívida: saber quanto se deve, para quem e em quais condições. Muitas pessoas possuem dívidas pulverizadas, como cartões, boletos, empréstimos e só percebem a gravidade ao somar tudo. Em seguida, é essencial revisar o padrão de consumo e identificar o que pode ser cortado. Isso pode incluir abrir mão de bens, como um dos carros da família, ou procurar alternativas de renda. A reorganização financeira exige honestidade, disciplina e, muitas vezes, decisões difíceis.
Como montar um orçamento doméstico eficaz e evitar o endividamento?
MV: Hoje, há muitos cursos e ferramentas gratuitas, como planilhas e aplicativos, que ajudam no controle financeiro. Um bom orçamento parte da definição de limites claros de gasto em cada categoria: moradia, transporte, alimentação, educação, lazer etc. A chave é saber exatamente para onde está indo o dinheiro. Muitos se surpreendem ao ver o quanto gastam com pequenos hábitos recorrentes, como delivery, transporte por aplicativo ou saídas frequentes. A organização revela onde é possível cortar para equilibrar o orçamento.
Quais hábitos simples do dia a dia podem ajudar a manter as contas em ordem?
MV: Pequenas atitudes fazem grande diferença. Cozinhar em casa, planejar as compras, controlar o uso de energia elétrica e evitar desperdícios são exemplos. Compartilhar caronas ajuda a economizar e ainda melhora o trânsito. O segredo está na disciplina: anotar gastos, planejar refeições, evitar o consumo por impulso e ter consciência do impacto de cada hábito no orçamento mensal.
Quais são os erros mais comuns que as pessoas cometem ao tentar sair das dívidas?
MV: O erro mais frequente é alongar indefinidamente as dívidas, criando a falsa sensação de alívio ao fazer novos empréstimos ou usar o cartão para ganhar tempo. Isso mascara o problema real, que é o desequilíbrio entre receitas e despesas. Muitas famílias resistem a cortar gastos e a reduzir o padrão de vida, mesmo quando a renda já não comporta mais. Sem essa mudança, o endividamento vira uma bola de neve.
É possível renegociar dívidas de forma vantajosa? O que deve ser levado em conta ao negociar?
MV: Sim, é possível e, muitas vezes, vantajoso. Em situações de inadimplência, é comum que credores ofereçam reduções significativas, como descontos de 50% ou mais, para receber parte da dívida. Porém, a renegociação deve ser feita com planejamento. Antes de fechar um acordo, é importante avaliar se a nova condição cabe no orçamento e se haverá capacidade real de cumprir os pagamentos.
Qual a importância da educação financeira e como ela pode mudar o comportamento de consumo?
MV: A educação financeira é fundamental e ainda pouco difundida no Brasil. Mesmo em escolas particulares, o tema é tratado de forma superficial. Já nas públicas, é praticamente inexistente. Em países como os Estados Unidos e nações da Europa, jovens chegam à maioridade com noções sólidas sobre orçamento, poupança e crédito. Aqui, essa formação ainda é escassa, o que contribui para decisões ruins no consumo e no uso do crédito.
Para quem tem renda variável ou informal, como organizar o orçamento de forma mais segura?
MV: Quem vive de renda variável ou trabalha na informalidade deve ser ainda mais cauteloso. Como a receita não é fixa, é fundamental manter uma reserva financeira equivalente a, pelo menos, três meses de despesas. Isso garante uma rede de segurança em caso de imprevistos, como foi, o lockdown na pandemia da Covid-19, que pegou muitos informais de surpresa e os levou à instabilidade financeira.