A inteligência artificial e seus impactos no Direito Penal
A inteligência artificial está nos holofotes, pois representa mais um grande passo da revolução tecnológica que vemos cotidianamente. Conhecida como IA, é a ciência da compreensão do fenômeno da inteligência das máquinas, relacionada com a engenharia cibernética e com a criação de instrumentos que visam (na teoria) apoiar os humanos e a sua inteligência humana. Entretanto, alguns estudos indicam que a inteligência artificial supera a inteligência humana em determinadas tarefas. E é neste ponto que mora o perigo em face do Direito do Processo Penal, pois a inteligência artificial surge com programas de computadores, que nitidamente podem ser alvo de manipulação e criação de prova, e também ao erro sistêmico.
Todavia, existe uma corrente que defende a inteligência artificial no Direito, principalmente com relação ao aumento da eficácia do Poder Judiciário. Para estes, essa tecnologia seria fundamental para um controle interno de máquinas sistematizados de busca de jurisprudências e outros controles de atos que, até então, são praticados por humanos que exercem funções hierarquizadas em ofício/vara criminal.
É evidente o avanço da tecnologia nos serviços jurídicos advocatícios. É uma realidade da qual não podemos retroceder e em alguns aspectos traz pontos positivos. Porém, é importante ressaltar que o Direito Penal deve ser analisado com ressalvas, pois os seus quatro pilares são: devido processo legal, ampla defesa, contraditório e a busca da verdade real dos fatos (prosperando o in dubio pro reo).
Assim, é importante refletir sobre a utilização da inteligência artificial na análise das provas. A máquina conseguirá avaliar as provas – autoria e materialidade – da mesma forma que um humano?
Relevante dizer que para a busca da verdade real dos fatos deve-se chegar a uma conclusão de alma, e isso somente é possível por juízes, procuradores, advogados e policiais humanos. Ainda é impossível para as máquinas e para a inteligência artificial terem a sensibilidade humana face ao caso em concreto envolvendo também exclusivamente vidas humanas.
Vale ressaltar que investigados ou réus em processos penais não pensam como máquinas e, portanto, seus atos não serão possíveis serem analisados na essência para uma efetiva e real busca da verdade real dos fatos. Mais grave ainda em casos de extrema complexidade ou até mesmo um caso de homicídio, feminicídio, infanticídio e outros crimes.
Um ponto interessante a ser questionado é: quem é o responsável por delitos praticados por sistemas de inteligência artificial?
Por exemplo, no caso de manipulação da prova, que pode ser realizada através de uma simulação e criação de voz idêntica de um indivíduo, incriminar uma pessoa em um cenário que inexiste na realidade fática.
Esse é um fato que pode ocorrer com frequência e a resposta, do ponto de vista técnico jurídico, é que a responsabilidade é das pessoas jurídicas criadoras do sistema. Isso porque essas pessoas são responsáveis, por exemplo, por um erro de software ou até mesmo conduta dolosa de manipulação de algo em concreto (responsabilidade objetiva). Podem ser responsabilizados também os sócios pessoas físicas da empresa, a depender da situação, até um terceiro que exerceu uma conduta típica com manipulação do sistema de forma isolada.
Vamos pensar em um caso em concreto, que a prova em uma ação penal seja reconhecimento de voz ou facial obtido através de cumprimento de mandado de busca e apreensão, e após a perícia policial realizada, a acusação pleiteia a condenação do réu, entretanto, nesse caso a prova digital deve ser aferida do ponto de vista da defesa do réu, se de fato foi manipulada ou prospera dúvida através da análise dos metadados e preservação da cadeia de custódia. Nesse caso, emerge a dúvida quanto a validade da prova, que inclusive como todos sabem, através da inteligência artificial pode ser criada. A IA pode criar voz, face, documentos, provas, áudios, fotos, vídeos, o que faz existir a dívida de essência.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a inteligência artificial está mais avançada, inclusive quanto a sua aplicação no Direito e Processo Penal. Especialmente na fase de investigação pela polícia judiciária, o que permite informações atualizadas com mais velocidade do que o alcance humano. Assim, a investigação, com cruzamentos de dados movidos por uma máquina e sistemas de última geração, consegue auxiliar na busca e prisão de indivíduos por câmeras de reconhecimento facial, por exemplo (e na mesma forma acontece nos Emirados Árabes Unidos). Entretanto, deve ser analisado de forma crítica o fato de que nos EUA o cálculo da pena dos acusados em alguns Estados serem realizados por algoritmo. O correto deveria ser analisado por um humano. A avalição deveria ser humana para ver se de fato o outro humano demonstra, por exemplo, em uma avaliação interna prisional, a conscientização interna de ter praticado ato ilegal, estar cumprindo pena por isso, mas estar ressocializado com entendimento de que deve voltar a convivência com outros humanos, sem delinquir. Essa análise não é possível por uma máquina. Analisar o grau de periculosidade do agente, algumas questões e progressão para um regime menos gravoso, ainda não deve ser papel da tecnologia.
Cabe destacar que na União Europeia, recentemente, o Parlamento Europeu, através do texto aprovado P9_TA (2021)0405, que versa sobre a inteligência artificial no Direito Penal e a sua utilização pelas autoridades policiais e judiciária, trouxe uma resolução expressa sobre esta matéria.
O Parlamento Europeu se baseou em diversos Tratados, Cartas, Convenções, Códigos, Comissões, documentos, livros, Regulamentos, Diretivas, e expressou que insta a agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia a elaborar orientações e recomendações com o intuito de direcionar os requisitos para o desenvolvimento e aplicação da inteligência artificial em todo o seu sistema.
De acordo com o Parlamento, deve ser estudado a aplicação da Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção de dados na aplicação da lei e à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão-Quadro 2008/977/JAI do Conselho, JO L 119. Assim, pretende-se formar entendimento de como preservar a proteção de dados pessoais e também existe o incentivo de ação legislativa específica para definir critérios de aplicabilidade da inteligência artificial pela polícia e pelo Poder Judiciário.
Importante entender que independente do país ou continente, a inteligência artificial sempre deve ser analisada face aos pilares do processo penal. Além disso, é preciso avançar nas discussões sobre a aplicação da inteligência artificial nesse universo penal, para ditar as regras do jogo. E como último aspecto, deve ser afastado a aplicação do ChatGPT para confecção de petições por advogados, pois torna-se a máquina a fazer a defesa (sem contar os casos de informações fake e inexistentes captadas e selecionadas pelo sistema a serem apresentadas ao juiz e também casos de inteligência emocional da Constituição), não tendo a análise do advogado face a essência de alma do caso em concreto e a exposição fáctica. E vale dizer que, por ainda não ser 100% confiável em diversos aspectos, a inteligência artificial também pode errar.
Eduardo Maurício é advogado no Brasil, Portugal e Hungria, presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Internacional da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim)