A inteligência do caracol
Fala-se em fake news, tanta divulgação de falsas notícias, na influência deletéria sobre os eleitores, em mácula dos processos eleitorais e, por fim, na distorção da democracia. Sem negar nada disso, quero afirmar que a mentira não é o maior problema da política atual. A mentira, diga-se de passagem, é parte constituinte da política, da vida pública. Ninguém aparece como é em público. A aparência é a lógica das relações públicas e os acordos são costurados com aquilo que se pode mostrar e com aquilo que se pode prometer, um dia. Os gregos, quando usavam o termo alethea para designar a verdade, não se referiam a algo evidente, claro e distinto, mas como algo que se mostra. Ora, algo que se mostra, mantém algo que ainda se esconde. Não somos inteiramente transparentes, mas translúcidos. No entanto, em torno dessa margem de visibilidade, construímos as regras de funcionamento social. E a isso chamamos de verdade.
O problema novo é justamente a perda do valor dessa verdade. A ideia de que algo é certo porque foi acordado assim, de que uma direção é a mais adequada porque há um consenso em torno disso, de que uma explicação é a mais acertada, porque uma comunidade de estudiosos concorda com isso, de que um fato é este e não outro porque há testemunhos históricos suficientes. Nada disso tem mais importância para o mundo público. A isso alguns chamam de pós-verdade.
A dissolução desse acordo de construção das regras de convivência pública em torno de certas marcas acreditadas por todos é a fonte desse novo mal estar, dessa vertigem que presenciamos. Essa novidade não pode ser combatida apenas com a crítica àqueles que propagam falsidades. É preciso admitir que a crença na mentira tornou-se uma prática comum – não porque quem crê necessariamente sabe que é mentira, mas porque perdeu-se o respeito devido pela ideia de buscar a verdade, de verificar as diferenças entre os marcos reguladores da verdade (a diversidade de fontes, por exemplo) e a da mentira que se crê.
E assim, a disseminação da mentira acontece com a mesma ênfase com a que se buscou, há algum tempo, preservar a verdade; com a mesma convicção e com a mesma imensa desconfiança pelo “outro lado” que pode desconstruir esse porto seguro e acolhedor de se poder dizer algo sobre o qual se tem algum controle em um mundo sem referências, que traumatiza e apavora.
Cair na mentira, em outros tempos, em outro mundo, era algo desonroso. Hoje, tornou-se liberdade de expressão. Eu torno a minha opinião na minha verdade. Em um mundo que fragmentou costumes e que as pessoas mudaram tão drasticamente (geração x, y, z) e a cultura de massas esvaziou o gosto das coisas e a aceleração técnica desvalorizou os saberes, ter uma opinião é quase a única coisa que resta. Essas pessoas então se unem não mais para trocar ideias, mas para medir fidelidades a um pensamento comum e para organizar ações contra os diferentes.
O mundo se reduziu a amar ou odiar a opinião. #opresidentetemrazão
Como o caracol que não põe mais a cabeça para fora porque não confia mais no mundo e vê em tudo perigo e desastre. Só o seu mundinho de poucas frases parece coeso suficiente para chamar de seu. O único vínculo possível de se fazer com os outros é ditado por essa solidão. A liberdade é o seu contrário, é a autonomia, a ousadia. E o encontro entre pessoas livres é construído horizontalmente, sem obrigações ou dependências, sem juras de fidelidade, mas baseado naquilo que se mostra um ao outro e nas regras que se constroem em torno de lugar comum que é o do consenso. Para quem não sabe o que é isso, parece um monstro a ser combatido. Ser livre é discordar de mim, questionar-me. Os “meus” não fazem isso. #morraliberdade
A mentira tornou-se “liberdade de expressão” porque perdemos a ideia de liberdade. Ninguém diria algo assim se soubesse do que se trata. Só quando formos capazes de recuperar os espaços nos quais as experiências de liberdade possam ser compartilhadas, e ensinadas aos menores, e exercitadas pelos moços e moças, quem sabe poderemos reverter essa ameaça. Trata-se de uma luta contra o tempo. #tictactictac
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.