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A Sagrada Face é Yanomami


A comovente Via Sacra da Pastoral da Criança, realizada há poucos dias pelas ruas do centro da cidade de São Paulo, nos revela um significativo flash de como terá sido, ao longo do tempo, esse momento único de piedade.

Como se sabe, a Via Sacra revela os passos da caminhada que Jesus percorre desde o tribunal de Pilatos até o cume do Monte Calvário, no qual será crucificado e morto.

É o itinerário que demarca uma parte da Sexta-Feira Santa.

Como que acompanhando os passos de Jesus vamos recordando os sofrimentos dele e do povo que, ao longo dos séculos, é igualmente crucificado junto com Ele.

São três as quedas que, sob o peso da cruz, Jesus sofre ao longo do caminho. E nós, a cada uma delas, podemos meditar sobre nossas muitas quedas. Quais são os pesos que mais nos oprimem: a carne, os olhos, a soberba. Naturalmente, não são só três as quedas. Tudo é simbólico e provoca, exorta, a reflexão.

É o encontro com alguém que, talvez até sem que o deseje, nos ajuda a carregar a nossa cruz, cujo peso somos incapazes de suportar. Quantas vezes nos dispusemos a apoiar alguém no meio de sua caminhada?

Pois bem. Aqui vamos nos deter num desses passos, tal como é descrito pela tradição multissecular desse dia.

No sexto passo uma mulher surge, por assim dizer, do nada. Do meio da multidão ela sai correndo, vence a barreira daqueles que o cercam e, com uma toalha, presta um serviço de caridade a Jesus, enxugando a Face conspurcada pelo sangue, pelo suor, pelas lágrimas, pelos escarros e pela poeira das ruas.

O que acontece, então?

Jesus quer perpetuar o agradecimento a esse gesto de caridade.

Não nos esqueçamos disso. Tudo o que fazemos por amor, até mesmo um copo d´água que damos a alguém recebe a gratidão de Jesus. É a Ele que estamos dando a água…

Para assinalar a gratidão, Jesus demarca sua Face na toalha com a qual a mulher acabara de lhe prestar esse gesto tão amoroso.

Reparemos agora no semblante registrado na toalha.

Como nenhum de nós jamais viu a Face de Jesus, em seus verdadeiros contornos, somente com os olhos da fé ela se nos entre mostra.

É assim, igualmente, com a toalha.

Cada um de nós assemelhará  na Face de Jesus o rosto daquele que, ao longo da vida, mais achamos parecido com Ele.

E nosso coração terá repetido as palavras com que Santa Teresinha (Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face) se dirigia a Ele: digna-te imprimir em mim tua Divina Semelhança.

E  Verônica, como chamam  essa mulher, mostrou para os demais a Face adorável de Jesus tal como a ela se apresentara.

O rosto que ela vira fora deformado pelo sofrimento, como assinala Isaías.

Portanto, não se tratava de algo formoso, de uma pintura como retratada pelos séculos afora pelos artistas plásticos.

Não haveria ninguém, no entanto, que não reconhecesse aquela Face. Reverberava dela a expressão de gratidão, de comoção, com que aquele a quem foi realizado o amoroso gesto de caridade quer retribuir, deixando impresso para sempre no mais íntimo do ser, o favor tão pequeno que lhe fora prestado.

Pois bem. O nome Veronica quer dizer “ver ônica”, isto é, verdadeiro ícone. Trata-se, com efeito, de mera lembrança da toalha. Não há registro, na tradição, do nome civil da mulher que tanto agradou a Jesus. Ela será, sempre que esse momento for recordado até o final dos tempos, uma das pessoas que apoia Jesus.

O verdadeiro ícone, como quis retrata-lo a Via Sacra da Pastoral da Criança é a Face sofrida de Jesus que se expressa no povo Yanomami.

Eu ouvi os clamores do meu povo, por causa dos seus opressores, diz o Livro do Êxodo, e desci a fim de libertá-lo das mãos do opressor, para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel.

Eis o que o povo Yanomami e todos os oprimidos, os marginalizados, as crianças, os adolescentes, os que passam fome, os que perambulam pelas ruas sem nem mesmo um lugar para repousarem a cabeça esperam de nós nessa Via. Que é, na feliz denominação da Imitação de Cristo, a Estrada Real da Santa Cruz.

Na região central da mais pujante cidade do Brasil, distantes e próximas dos Yanomamis, as pessoas em situação de rua pedem o copo d´água que se lhes recusam com frequência diária.

Naquele dia da Via Sacra fora instalado imponente caminhão-pipa para saciar a sede do povo de rua. Mas, se você passar por lá hoje,  na Praça da Sé, constatará que o caminhão já foi embora…

Agora, o clamor do povo chegou até Ele. E, com o clamor, a exigência, tanto do povo Yanomami, que quer, que exige, o direito de fruir em plenitude da terra que lhe pertence desde muito antes da chegada daqueles que “descobriram” a Terra da Santa Cruz, como das crianças, do povo em situação de rua, e dos excluídos em geral, é para que o gesto simbólico da Verônica se concretize em propostas e programas de verdadeira e própria inclusão social.

Que assim se mostre, para nós, a verdadeira Face de Jesus.

Wagner Balera é coordenador do Núcleo de Estudos de Doutrina Social, Faculdade de Direito da PUC-SP