As crianças e o futuro
Cresci ouvindo as histórias sobre a infância pobre de minha mãe. Quando visitava minha avó ou minhas tias, o assunto aparecia alguma hora e todos tinham algum episódio triste ou constrangedor para contar. Família numerosa, apenas eu e um primo chegamos na universidade. Na geração que trabalhou desde criança, todos continuaram pobres ou quase pobres. Minha mãe deixou os estudos na terceira série do primário e os outros um pouco depois. O trabalho era mal remunerado, pois afinal eram apenas crianças. Depois de adultos, sem escolarização adequada, continuaram mal remunerados porque, afinal, não se “esforçaram o suficiente” para melhorar de vida. Muita gente ainda pensa assim, muita gente, cheios de razão em seus silogismos perversos.
Segundo o IBGE, em 2016, mais de dois milhões de crianças e pré-adolescentes trabalhavam no Brasil. Um país com um passado escravista e com uma legislação social ignorada em muitas regiões do país, a exploração do trabalho infantil é revestida e naturalizada por um discurso de aprendizado e experiência que ajuda a criança a se afastar das drogas e das más companhias e conheça, desde cedo, o valor do trabalho honesto. Recentemente o presidente da República reafirmou essa tese: “deixem as crianças trabalharem”, disse, como a versão de um Roosevelt paleolítico.
Há poucos dias, o economista francês Thomas Piketti afirmou que a possibilidade de o Brasil se desenvolver efetivamente é muito difícil em face da desigualdade social. Ela impede que as novas gerações consigam ampliar a produtividade, incorporando as novas tecnologias, melhorando a receita do país e possibilitando uma maior distribuição de renda. Ou seja: nosso discurso sobre como o “trabalho” dignifica a criança é um tiro no peito do nosso futuro, porque prejudica a formação necessária para que essa criança se torne um adulto produtivo e capaz de gerar e receber mais dinheiro.
Uma dessas crianças que trabalham, chamado Sandro, abordou-me perto da minha casa, pedindo que eu comprasse um pacotinho de balas de goma. Ele me disse que estava na rua desde às nove da manhã e só tinha conseguido três reais e cinquenta centavos. Mostrou-me a caixa com as fileiras coloridas, quase cheia. Disse também que tinha comido seis balinhas e aquilo tinha sido tudo o que tinha ingerido de alimento naquele dia. Eu tinha uma nota de vinte no bolso e ofereci para ele, dizendo para ele comprar um lanche. Ele agradeceu e disse-me que não poderia comprar um lanche pois precisava levar comida para casa, para a mãe e o irmão menor. Eu falei então que ele fizesse o que achasse melhor, o dinheiro agora era dele. Sandro então contou-me, sorrindo, que compraria vina e macarrão com aquele dinheiro. E que ainda poderia comprar algo mais com os três e cinquenta que tinha conseguido.
Esse menino que estava, em um sábado, trabalhando há oito horas, sem comer nada de nutritivo, é o futuro do Brasil. Quando olhamos para esses meninos e meninas nas esquinas das ruas, ou vemos imagens de milhares deles trabalhando nas áreas rurais, ribeirinhas, periféricas, nos lixões que ainda desafiam qualquer racionalidade urbana, no comércio e em indústrias de fundo de quintal e quando nos enganamos dizendo que isso é bom, que assim eles aprendem o valor do dinheiro desde cedo e que ajudam às famílias, não nos esqueçamos: eles e elas são o futuro do Brasil.
Minha mãe conta que certa vez jogou uns centavos no jogo do bicho e ganhou um prêmio. Correu no açougue e comprou uma rodela de salsicha. Sentindo-se sortuda, cortou um pedaço e comeu sozinha. Levou o resto para casa, para a mãe, minha avó, fazer a janta para a família. Como Sandro fez. Minha mãe, de 82 anos, foi o passado do Sandro, um passado resistente como uma praga que suga as raízes das plantas novinhas, impedindo que se desenvolvam. E o Brasil repete esses erros porque é um país de memória falha. Ou de caráter, talvez.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
[email protected]
@profdanielmedeiros