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Diocese de Assis

 

Outubro nos bate à porta. E com ele mais um mês dedicado à reflexão da vida missionária no mundo católico. Mas bom seria se mais seguimentos da coletividade humana pudessem parar por um instante e olhar o mundo com um novo olhar, que englobasse o mistério da vida e a nossa missão neste planeta tão sofrido e angustiado pelas contradições que vive. Então a Igreja volve seu olhar maternal e lança um desafio “aos homens de boa vontade”, para que o mistério que nos envolve seja ao menos uma experiência positiva ou no mínimo construtiva. Aceitar isso é assumir uma missão existencial. Tal qual aquela que mobilizou o jovem Isaias com sua descoberta do sentido da vida.

A vocação de Isaías foi uma visão beatífica da beleza existencial, com anjos e serafins louvando e clamando a Deus pela continuidade desse sonho de vida plena.  Tudo que observava ao seu redor proclamava a grandeza da criação, conquanto a maioria do povo não enxergasse essas maravilhas.  Ao contrário, Isaías não compactuava com o comportamento rebelde do seu povo e se sentia responsável: “Ai de mim que estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, habito no meio dum povo que tem os seus também impuros” (Is 6, 5) Esse é o inconformismo dos frustrados e acomodados. Sem saber como agir diante de situações contrárias à própria índole, entregam os pontos e acabam compactuando com o erro da maioria. Lavar as mãos sempre foi atitude de covardia diante do erro coletivo. É a mais vil das omissões, aquela mesma que condenou Cristo à morte.

A verdade prevalece sempre, Mesmo em forma de uma turquesa em brasa, capaz de queimar a língua dos omissos e dissipar a covardia do silêncio que tenta encobrir a voz da verdade. O destrave da língua presa é revelador: “Eis-me aqui, envia-me” (Is 6,8).  Eis-me aqui! Essa descoberta da responsabilidade profética e missionária é o grande momento da transformação que uma revelação divina faz a cada um de nós, diante do caos que nos aflige. Não só Isaías fez essa descoberta, mas todos aqueles que um dia olham para o mundo através da janela da sensatez e do compromisso com a vida, farão sua essa palavra de submissão à vontade de Deus. A defesa da vida é missão dos vivos. Crentes ou ateus, existencialistas ou criacionistas, conceituados cientistas ou simples defensores das diversas teses evolutivas ou mesmo amantes da sobrevivência pura e simples, todos, de uma forma ou outra, somos chamados a defender a vida como nossa maior riqueza.

Por essa e outras é que a Igreja nos convida a refletir sobre esses mistérios, de quando em vez. Um mês missionário, em ano endêmico e desafiador, talvez seja um momento purificador e, no mínimo, restaurador das energias que necessitamos. É realmente um olhar da janela de nosso quadrilátero, nosso mundinho pessoal fechado em nós mesmos. A arte dessa campanha missionária diz tudo isso. O Papa nos desafia a olhar da nossa janela, como ele sempre o faz contemplando os “pequeninos”, os marginalizados da nossa “periferia existencial”, emoldurada agora pela resolução profética dos que se dispõem a somar forças: “Aqui estou, envia-me!”. Que mais pessoas aceitem esse desafio. Que, independentemente do credo ou descrédito de alguns, possamos somar forças para restaurar o cenário desse mundo sem grandes perspectivas. Um olhar realista sobre os fatos que nos circundam, que nos amedrontam, que ameaçam nossa integridade, seja física, espiritual ou integral (quando ameaça a própria existência planetária) é um critério de tomada de consciência transformadora. Isso é defesa da vida. Isso é missão. Isso é olhar o mundo, a vida, com os olhos da misericórdia que um dia nos criou à sua semelhança. Sejamos, nesse outubro missionário, os agentes de transformação de que o mundo precisa. “O Senhor disse-me: Vai e dize a esse povo…” Está lá, em Isaías, seis.

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]




Diocese de Assis

“A pandemia é uma crise e não saímos iguais de uma crise: ou saímos piores ou melhores”. Com essa quase radical constatação, Papa Francisco já acena para os dias pós pandemia, anunciando ao mundo sua mais nova encíclica, cujo nome não poderia ser outro em tempos de crise: “Fratelli Tutti”, ou seja: “Todos irmãos”, em tradução livre. Sua grande preocupação com esse momento lembra a atitude normal de um bom pastor com seu rebanho, que realça a qualidade maior dum rebanho coeso (‘Devemos cuidar uns dos outros’), mas não ignora a realidade: “A pandemia evidencia como todos somos vulneráveis e estamos interconectados”, disse o Papa.

O oportuno documento será oficialmente lançado e assinado às vésperas do dia de São Francisco de Assis, na cidade italiana que lhe empresta o nome e sobre o túmulo do santo que inspira e conduz o atual pontificado católico. Não poderia ser diferente. A solenidade se dará logo após missa celebrada pelo santo padre, cuja inspiração e filiação franciscana é conhecida do mundo todo e, de certa forma, tem inspirado, conduzido e influenciado os documentos e ações do atual pontífice. Não seria diferente agora, quando a assustadora pandemia afeta a todos e ameaça o equilíbrio necessário à vida em todos os seus aspectos, até mesmo na realidade ecológica e social.

Francisco, o papa, afasta-se publicamente dum possível pedestal que o cargo possa lhe oferecer, para inserir-se na realidade dum mundo em caos e tornar-se mais um dentre todos, como bem o fez o outro Francisco, o pobre. Estamos juntos nessa. Não há como separar o joio e o trigo, o mau e o bom, o pobre e o rico, pois a responsabilidade social é a única possível tábua de salvação capaz de nos tirar desse sufoco. Por isso o subtítulo dessa encíclica reforça e lembra dois aspectos da cura que almejamos: “Sobre a fraternidade e a amizade social”. Ou seja: sem o espírito da fraternidade universal e sem o respeito social imposto por isolamentos forçados ou necessariamente saneadores, corremos o risco de vivenciarmos as visões apocalípcas. Alguém vai pagar pra ver?

Para melhor compreensão do tema central desse precioso e oportuno documento, o papa o apresenta com três faces. A primeira aborda aspectos da unidade necessária em tempos de crise global, sob o título “A fraternidade humana universal”. Como só agora damos conta do valor da unidade em tempos de crise, a fraternidade aqui exposta deixa de ser mera virtude religiosa para se tornar gritante necessidade de uma raça tentando sobreviver. Ou seja: pela dor se descobre o amor. Mais do que nunca, a cartilha franciscana dita as regras em sua oração fraternal: onde houver desespero, que eu leve a fé.

A segunda face traça os passos da vitória: “A solidariedade necessária após a pandemia”. Alguém vai pagar o preço. Não pensem as nações ricas que ficarão isentas de sua responsabilidade social para com o mundo após o diagnóstico da cura global. Serão caras, caríssimas, as ações necessárias à reconstrução do muito que já perdemos e haveremos de perder após esse surto. É preciso correr atrás do prejuízo, do tempo perdido na educação, dos prejuízos em tantas e tantas áreas que bem conhecemos. Aqui não pode prevalecer o interesse grupal, nacionalista, racial, ou seja lá o que for. A solidariedade humana será o único caminho plausível de uma reconstrução verdadeira, se não quisermos um retrocesso histórico. Por fim, “O diálogo inter-religioso” deverá pautar toda e qualquer orientação de fé, independentemente de suas diferenças ou profissões religiosas. Mais do que nunca, a fé humana busca luzes em meio à escuridão do momento e não podemos ofuscar essa grande aliada que nos renova as esperanças. Deus está acima de tudo. Ele é Pai. Somos irmãos…

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]

 

 




Diocese de Assis

A Igreja vive daquilo que recebeu do Cristo e, somente por isso, sobrevive ao tempo, às ideologias, às modas, aos ataques, às perseguições… a tudo: “sobre essa pedra construirei a minha Igreja, e o poder da morte nunca poderá vencê-la” (Mt 16,18). Fundada pelo próprio Cristo, a Igreja é de instituição divina. Tendo como princípio vital a unidade ela é chamada a fazer da unidade, sua verdadeira missão. “Para que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti. E para que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo acredite que tu me enviaste. Eu mesmo dei a eles a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um” (Jo 17,21-22).

A teologia paulina, sobre a Igreja, que usa a imagem-símbolo-sinal do corpo, é uma síntese perfeita do que é a Igreja (1 Cor)

“De fato, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e no entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só corpo. Assim acontece também com Cristo.  Pois todos fomos batizados num só Espírito para sermos um só corpo, quer sejamos judeus ou gregos, quer escravos ou livres. E todos bebemos de um só Espírito. Ora, vocês são o corpo de Cristo e são membros dele, cada um no seu lugar.  Aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres… A seguir vêm os dons dos milagres, das curas, da assistência, da direção e o dom de falar em línguas. Por acaso, são todos apóstolos? Todos profetas? Todos mestres? Todos realizam milagres? Têm todos o dom de curar? Todos falam línguas? Todos as interpretam?” (1Cor 12,12-14.27-31).

Do princípio vital de unidade, decorrem todos os valores, meios, recursos e instrumentos para a vida da Igreja: a comunhão eclesial, a obediência hierárquica (ao papa, bispos e padres), a fidelidade doutrinária, a participação na vida eclesial, a missão batismal, a vida sacramental.

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, a Igreja é una, santa, católica, apostólica.

A Igreja é una: tem um só Senhor, confessa uma só fé, nasce de um só Batismo, forma um só Corpo, vivificado por um só Espírito, em vista de uma única esperança, no fim da qual serão superadas todas as divisões (nº 866).

A Igreja é santa: o Deus Santíssimo é seu autor; Cristo, seu esposo, se entregou por ela para santificá-la; o Espírito de santidade a vivifica. Embora congregue pecadores, ela é “imaculada (feita) de maculados” (“ex maculatis immaculata”). Nos santos brilha a santidade da Igreja; em Maria esta já é a toda santa (nº 867).

A Igreja é católica: anuncia a totalidade da fé; traz em si e administra a plenitude dos meios de salvação; é enviada a todos os povos; dirige-se a todos os homens; abarca todos os tempos; “ela é, por sua própria natureza, missionária” (nº 868).

A Igreja é apostólica: está construída sobre fundamentos duradouros: “Os doze Apóstolos do Cordeiro”; ela é indestrutível; é infalivelmente mantida na verdade: Cristo a governa por meio de Pedro e dos demais apóstolos, presentes em seus sucessores, o Papa e o colégio dos Bispos (nº 869).

A unidade da Igreja deve ser vista nos seus membros. Por isso, vale a pena observar o alerta de São Paulo: “Saiba, porém, que nos últimos dias haverá momentos difíceis. Os homens serão egoístas, gananciosos, soberbos, blasfemos, rebeldes com os pais, ingratos, iníquos, sem afeto, implacáveis, mentirosos, incontinentes, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres do que de Deus; manterão aparências de piedade, mas negarão a sua força interior. Evite essas pessoas! Quanto a você, permaneça firme naquilo que aprendeu e aceitou como certo; você sabe de quem o aprendeu. Desde a infância você conhece as Sagradas Escrituras; elas têm o poder de lhe comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo. Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda boa obra” (2Tm 3,1-5.14-17; 4,2-5).

PE. EDIVALDO PEREIRA DOS SANTOS




Diocese de Assis

    Que as aparências enganam não é preciso dizer. Mas que são construídas com sabedoria, sim. Comparo-as a uma obra de arte, uma embalagem de um produto, um rótulo. Quanto mais atraente, melhor. Não vejo nisso maledicência alguma, pois que esta é sua função, ou seja: chamar a atenção para a preciosidade ou qualidade do conteúdo que ostenta.

Aqui é que são elas! Será o conteúdo equivalente à beleza do rótulo, da embalagem? Pão dos anjos ou fermento dos fariseus? A fé aparente é uma embalagem sem conteúdo, mercadoria dos tolos. Essa é a que mais se expõe nas prateleiras de uma campanha política ou comércio da simpatia popular, por exemplo. Bela por fora, bolorenta na sua triste realidade. Contra ela não existe lei de proteção aos consumidores, senão aquela que vem do alto. Mas até lá, pobre de quem compra gato por lebre.

Deixemos, por enquanto, esse parecer negativo, para realçar a beleza da embalagem genuína da fé. É como um tesouro impossível de se esconder, um produto de valor inquestionável. Ora, certo homem um dia encontrou esse precioso tesouro, na forma de imensa rocha de ouro. (Se bem que ouro seja metal, mas vamos lá!). Diante dela, começou a tecer planos, dando adeus à vida de privações de até então. Começou a imaginar um futuro. Teria, enfim, seus sonhos realizados, a escola para os filhos, a mesa farta, o respeito dos vizinhos, o carro na garagem, tudo, tudo. Passou horas a imaginar a felicidade que aquele tesouro lhe proporcionaria. Já se sentia rico.

Aos poucos, foi caindo na realidade. Como transportar aquela descoberta, sem que ninguém a visse? Era muito pesada para um transporte solitário. Ademais, se saísse dali para buscar ajuda outro viajante poderia se apossar de seu tesouro. Se pedisse ajuda, teria que dividi-lo com seus auxiliares. Frente ao dilema, ficou por ali – dias seguidos – em vigília constante. Como usufruir daquela descoberta? Não tinha consigo sequer uma ferramenta que o pudesse ajudar.

Convenceu-se, afinal, de que sozinho nunca levaria para casa a enorme rocha de ouro puro. Uma ideia surgiu então: cobrir com barro sua preciosa descoberta. E assim fez, criando uma embalagem bem imprópria à beleza do tesouro descoberto. Perfeito! Assim, bem disfarçado, ninguém o descobriria, enquanto buscasse meios de transportá-lo e apossar-se em definitivo daquela riqueza.

Tão perfeitamente, porém, camuflou sua descoberta que, ao voltar dias depois, não mais a distinguiu dentre as pedras que povoavam aquele sítio. Tudo se resumiu a um sonho, transformado agora num pesadelo. Por não partilhar sua preciosa descoberta, voltou à miséria de sempre, sem eira nem beira. A avareza e o egoísmo prevaleceram como inseparáveis embalagens de um sonho belo, mas jamais saboreado, realizado.

Essa é a fé aparente. Uma experiência passageira, desconcertante, ilusória, que não leva a nada. A fé verdadeira é um tesouro visível a todos. Não se esconde tamanha preciosidade na vida. Muito menos com o barro da nossa insignificância. O brilho da fé vai além das aparências que forjamos em nossas vidas, das máscaras que vestimos, do barro que nos cobre. A fé é translúcida, contagiante, irremediavelmente solidária com todos que nos cercam, fazem parte dessa descoberta. Um produto sem embalagem artificial, mas brilhante em sua própria luminosidade. A embalagem da fé autêntica é transparente como o olhar do cristão sobre o mundo, as pessoas. Um olhar de compromisso, de solidariedade e amor. “O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo teu corpo será iluminado” (Mt 6,22). Se tua fé é genuína, teu olhar há de denunciar o tesouro que possuís dentro de ti. Não tem como escondê-lo.

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]

 




Diocese de Assis

DIÁRIO DE ASSISCOLUNA SEMANAL DIOCESE

 

 

DAR PREFERÊNCIA… A CRISTO!

 

Dar preferência é, antes de tudo, um exercício de liberdade que coloca uma pessoa em posição de escolha frente a tudo nesse mundo. Diversos são os elementos e critérios que levam alguém a preferir isso e não aquilo; esse e não aquele… De um modo geral, a subjetividade humana, marcada pelo ético (bom), estético (belo), religioso (moral), transcendente (divino), cultural (valores)… identifica e elege “os objetos” de sua preferência.

Dar preferência é, não só um direito, mas, uma descoberta, uma eleição, uma consagração, um poder que emerge do indivíduo, frente à possibilidade de escolha.

O comerciário, para cativar o cliente que comprou em seu estabelecimento ou usou os seus serviços, e não outro, faz questão de estampar em suas embalagens ou placas, o indispensável: “Obrigado pela preferência!”

O legislador de trânsito, para disciplinar o fluxo de veículos de uma via de pouco movimento para uma via mais densa, indica em placa: “Dê a preferência!”

No Evangelho de Lucas, o Cristo decreta: “Se alguém vem a mim, e não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, esse não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).

O que, afinal, significa isso? O que o Cristo quer dizer?

Exatamente o que está expresso no versículo: dar preferência a ele em relação a tudo; concretamente em relação ao seu pai, à mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida. Só assim alguém reúne condições para ser seu discípulo!

Por que preferir Jesus?

Porque, preferir Jesus não significa excluir, mas, priorizar; pôr em destaque; pôr em primeiro lugar: “Ouça, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor! E ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força”  (Mc 22,29b-30).

Porque preferir Jesus é realizar-se, verdadeiramente, no amor. Ora, quem não experimenta o amor de Deus; quem não se deixa amar, não amará de verdade o pai, a mãe, a mulher, os filhos, os irmãos, as irmãs, e, nem mesmo a sua própria vida! “Com efeito, Moisés ordenou: ‘Honre seu pai e sua mãe’. E ainda: ‘Quem amaldiçoa o pai ou a mãe, deve morrer’. Mas vocês ensinam que é lícito a alguém dizer a seu pai e à sua mãe: ‘O sustento que vocês poderiam receber de mim é Corbã, isto é, consagrado a Deus’. E essa pessoa fica dispensada de ajudar seu pai ou sua mãe. Assim vocês esvaziam a Palavra de Deus com a tradição que vocês transmitem” (Mc 7,10-13).

Porque preferir Jesus é a condição para ser seu discípulo. De fato, ser discípulo é “ter os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo” (Fl 2,5). É assumir a cruz: “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). É arriscar tudo: “Pedro começou a dizer a Jesus: ‘Eis que nós deixamos tudo e te seguimos.’ Jesus respondeu: ‘Eu garanto a vocês: quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, filhos, campos, por causa de mim e da Boa Notícia, vai receber cem vezes mais. Agora, durante esta vida, vai receber casas, irmãos, irmãs, mãe, filhos e campos, junto com perseguições. E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna.’” (Mc 10,28-31).

Porque preferir Jesus é dar sentido à vida: “Veja: hoje eu estou colocando diante de você a vida e a felicidade, a morte e a desgraça. Se você obedecer aos mandamentos de Javé seu Deus, você viverá e se multiplicará. Todavia, se o seu coração se desviar e você não obedecer, é certo que vocês perecerão! Hoje eu tomo o céu e a terra como testemunhas contra vocês: eu lhe propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto, a vida, para que você e seus descendentes” (Dt 30,15-19).

Porque preferir Jesus é ser salvo: “Vou salvar quem quer ser salvo” (Sl 12,6).

Você já pensou por que preferir Jesus?

Não pense em vantagens, como pensam os utilitaristas de Deus. Pense numa vida completa e realizada: “Em Cristo vocês têm tudo de modo pleno” (Cl 2,10).

Dê preferência ao Cristo!

PE. EDIVALDO PEREIRA DOS SANTOS




Diocese de Assis

Eis o que estamos vivendo: uma verdadeira pandemia de crise espiritual! Não mais um simples vírus biológico assusta e assola a integridade humana, mas também um terrível e incontrolável devorador da espiritualidade inerente ao ser humano. Este perdeu todo e qualquer senso de lógica, decência, equilíbrio na fé que tenta proferir. Os escândalos aí estão! Os desvios se sucedem, dia a dia, deixando incautos e desavisados mais incautos e desavisados, sem lhes oferecer pistas do melhor caminho. Com quem a verdade? Onde estacionar nossa esperança? Qual voz possui o timbre profético dos novos tempos? Enfim, vale a pena acreditar, quando tudo concorre para contínuas decepções?

Eis o perigo da descrença total. A maior e mais terrível das doenças humanas não é aquela que fere o corpo, ameaça a vida, mas faz sucumbir a esperança, a última das guardiãs da alma humana. Contra esta não existe vacina, nem anticorpos, nem qualquer paliativo biológico que vença sua voracidade diabólica. Ela se dissemina exatamente no silêncio dos que se entregam sem reação, sem palavras que despertem a inercia da maioria, a indiferença dos agentes de saúde da espiritualidade humana. Dos omissos. Na ação dos oportunistas. Muitos desses estão escandalosamente tirando proveito da cegueira dos ingênuos, deitando e rolando sobre essa ingenuidade, para se locupletarem em seus projetos de poder, fama, glória e dinheiro, muito dinheiro.

Não mais me espantam os sucessivos noticiários de escândalos religiosos. A mídia pensa ganhar audiência, mas perde. Não porque esteja disseminando inverdades, mas generalizando uma fraqueza humana como se esta fosse natural, institucionalizada. Uma instituição milenar não pode ser responsabilizada por deslizes de alguns poucos, que, aqui e acolá, pisam na bola vez ou outra. É o caso da Igreja cristã e de seu inúmeros braços devocionais que hoje são massacrados pelos deslizes ou desvios de alguns de seus membros (muitos desses apenas acusados, mas sem comprovações; outros desgraçadamente comprovados), mas cujas ações ou omissões não distorcem o objetivo evangélico: levar todos os homens à salvação, ao entendimento de sua vida espiritual…

Uma pessoa de fé não pode julgar. Tem os olhos da carne arrancados pela certeza da misericórdia. Tem as mãos amputadas pela impossibilidade de assinar sentenças capitais. Os ouvidos moucos para as incertezas dos boatos. Cortar o mal pela raiz nos ensina a voz da prudência.  “Se teus olhos, tuas mãos… te escandalizam, arranca-os”, diria nosso mestre. Mas olhos e mãos são instrumentos de uma ação maior, a caridade, a solidariedade com os injustiçados, a esperança sempre renovada de que o bem vencerá, a verdade libertará.

Não sejamos nós os disseminadores do caos total, essa pandemia que faz naufragar nossa esperança maior. Os escândalos aí estão, solapando nossa fé, minando os porões seculares da Igreja de Cristo, a maior e mais visada das guardiãs da espiritualidade humana. É ela o alvo do momento. Querem nos destruir, destruindo por primeiro a instituição que zela pela integridade da fé cristã. Os eventuais escândalos que pipocam aqui e ali, continuarão existindo, porque a fraqueza é nosso lado humano. Mas não será apontando erros ou desvios próprios da fragilidade de que todos somos revestidos, que apagaremos dessa história a fortaleza da fé que defendemos. Sobre ela nada prevalecerá. Nem uma situação caótica como a atual, da qual sairemos mais fortalecidos e purificados, como em todos os momentos críticos pelos quais já passamos. E passaremos. Pois outros escândalos virão, para honra e glória daquele que tudo pode, tudo vence. E nos conforta com promessa de justiça: “Ai daqueles que escandalizam os pequeninos!”

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]

 

 




Diocese de Assis

Uma forma de omissão corriqueira é dizer-se leigo em determinado assunto. Assim fugimos pela tangente, sem maiores comprometimentos. Entretanto, leigo também é todo cristão batizado, que não exerce função clerical. O pior é que, por conta do indiferentismo religioso, muitos leigos assumem na prática sua condição de ignorância na fé, tornando-se estranhos ao assunto com o qual deveriam se identificar.

Pensando nisso, tempos atrás a Igreja tentou dissociar essa característica negligente de muitos batizados, reforçando sua identidade cristã, além da denominação laical pura e simples. Optou pela definição “cristãos leigos”. Não colou. O remendo piorou o soneto. Pois muitos cristãos continuaram indiferentes a seus deveres e práticas religiosas e, leigos mesmos; estranhos ao assunto pelo qual deveriam ser conhecidos no mundo secular. Uma coisa puxa a outra. Então, o que vemos é o secularismo do mundo traçar o destino da humanidade, isentando-a de maiores compromissos com os mistérios e dogmas de qualquer instituição religiosa. Muitos caem na descrença, na negação da fé que um dia receberam, por total ignorância ou vivência espiritual mais aprofundada na experiência com Deus.

Essa é a mais terrível das ameaças que o leigo cristão mal evangelizado, por influência do paganismo e das distorções religiosas hoje em voga, pode sofrer contra sua fé. Mas nem tudo está perdido. O que vemos florescer na Igreja, hoje, é uma geração de leigos mais comprometidos com sua fé e, consequentemente, com a própria Igreja. Buscam um aprendizado e uma vivência maiores. É a tal da qualidade, antes da quantidade, da qual nos falou Bento XVI no início de seu pontificado.

O leigo verdadeiramente cristão traz consigo três instrumentos de uso contínuo: uma alavanca, uma chave e uma luz. A alavanca poderia ser definida como vontade. Sem vontade própria, sem disposição para encarar os desafios que o mundo secular apresenta contra sua fé, sem um mínimo de interesse pela própria doutrina que diz professar, não chegará a lugar algum. Continuará um leigo na plena concepção da palavra. Já a chave, o segredo para bem desempenhar seu papel de agente de transformação no meio em que se faz presente, chama-se trabalho. “Quem põe a mão no arado, não olha para traz” – desafia Jesus. Portanto, é função, sim, de qualquer cristão, trabalhar a messe do Senhor com sua presença, seus próprios recursos, sua ação no mundo e na sociedade. O trabalho evangelizador do leigo é tão ou às vezes mais precioso quanto o de qualquer clérigo ou religiosa.

Já o terceiro instrumento – a luz – de nada vale sem a alavanca (vontade) e a chave (trabalho). Que luz é essa? Jesus deu-nos uma pista ao nos fazer o maior dos seus elogios ao povo de Deus. “Vós sois a luz do mundo!” Ora, a luz de que somos portadores nada mais é do que a fé que defendemos. Eis, pois, a fé, nosso terceiro e mais precioso instrumento de trabalho, a chave que nos abre as portas dos segredos celestiais! Quem valoriza em sua vida esses três instrumentos encontra forças para testemunhar sua fé, mesmo diante das adversidades que leigos no assunto teimam em proporcionar aos seguidores do nazareno. “Não tema, pequenino rebanho”, pois a fé que nos move, move também as montanhas da ignorância de muitos.

O cristão leigo só não pode ser inseguro. Temos, pois, um tripé que nos diferencia: uma alavanca, uma chave e uma luz. Com vontade, trabalho e fé faremos jus ao título de cristãos, pois que este, acima de todos os demais, é o título maior que nos identifica no mundo como portadores de uma Verdade. Essa preciosidade cristã nos foi confiada, para que o mundo seja salvo. E isso é de nossa inteira responsabilidade.

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]




Diocese de Assis

O que seria do dia se não fosse o sol? O que seria do sol se não fosse sua luz? O que seria da luz se não fosse capaz de iluminar?

Se queremos luz, precisamos ligar o interruptor, acender o farolete, trocar a lâmpada, riscar o fósforo, pôr azeite na lamparina… pagar a conta de energia!

Se queremos uma vida de luz, precisamos pedir a Deus que repita sobre nós as mesmas palavras que disse na criação: “‘Que exista a luz!’ E a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das trevas: luz Deus chamou ‘dia’, e às trevas chamou ‘noite’” (Gn 1,3-5).

Não há razão para viver ou permanecer nas trevas. A vida de luz é uma necessidade e deve se tornar uma opção diária de cada um de nós, como poder de uma nova visão porque “A lâmpada do corpo é o olho. Se o olho é sadio, o corpo inteiro fica iluminado. Se o olho está doente, o corpo inteiro fica na escuridão. Assim, se a luz que existe em você é escuridão, como será grande a escuridão!” (Mt 6,22-23).

Deus é luz e seu projeto de vida e salvação é projeto de luz. “Ele não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32).

Jesus é luz e luz verdadeira, totalmente estranha às trevas. Sabemos, portanto, que “toda nossa vida tem de ser iluminada pelos raios da verdadeira luz. Os raios do sol da justiça são as virtudes que dele emanam para iluminar-nos (São Gregório de Nissa, séc. IV) “para que rejeitemos as obras das trevas e vivamos honestamente como em pleno dia” (Rm 13,13).

Na verdade, “os que temem ao Senhor encontram a justiça, e suas ações justas brilham como luz” (Eclo 32,16). Por isso, a certeza que deve nos acompanhar é de que não temos luz própria; como a lua só brilha pela luz do sol, nós brilhamos pela luz de Cristo. Porque o que era profecia se tornou realidade: “o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; e uma luz brilhou para os que viviam na região escura da morte” (Mt 4,16).

Necessário é, que nos assumamos pessoas de luz, para que nossas ações correspondam à luz que somos e à missão da luz: “Vocês são a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte. Ninguém acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma vasilha, e sim para colocá-la no candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão em casa. Assim também: que a luz de vocês brilhe diante dos homens, para que eles vejam as boas obras que vocês fazem, e louvem o Pai de vocês que está no céu” (Mt 5,14-16).

Por causa do pecado, até parece impossível que consigamos produzir algo que corresponda à luz. De fato, o pecado deixa em nós o veneno do fracasso, da destruição, do medo, da insegurança… que não nos permite levantar a cabeça e seguir em frente. Embora sejamos pecadores, não podemos permanecer no pecado. “Deus é luz e nele não há trevas”. “Se caminhamos na luz, como Deus está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, o filho de Deus, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1,5.7).

No fim das contas, tudo depende de como estamos vivendo, o que nós esperamos, em que nós acreditamos e aonde queremos chegar. Porque “o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal, tem ódio da luz, e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam desmascaradas. Mas, quem age conforme a verdade, se aproxima da luz, para que suas ações sejam vistas, porque são feitas como Deus quer” (Jo 3,19-21).

“Enquanto vocês têm a luz, acreditem na luz, para que vocês se tornem filhos da luz” (Jo 12,36).

“Eu sou a luz do mundo! (Diz o Senhor). Quem me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida” (Jo 8,12).

Eu creio numa vida de luz!

PE. EDIVALDO PEREIRA DOS SANTOS




Diocese de Assis

 

A recente morte de dois expoentes do episcopado brasileiro trouxe à tona a velha discussão da polarizada ação pastoral latino-americana: direita ou esquerda, tradição ou vanguarda? A divisão voltou à baila nas discussões teológicas e nas opções pastorais de muitos setores da realidade eclesial desse vasto continente dividido entre ricos e pobres, classes operárias e elites de privilegiados, gentios pagãos e samaritanos incircuncisos. Afinal, qual das linhas seguir?

A resposta parece complexa. Mas, olhando para a história da Igreja Primitiva, encontramos similaridade com a vida dos apóstolos Pedro e Paulo. Dois turrões briguentos, porém fiéis ao desafio evangelizador, que provocaram profundas discussões teológicas e pastorais, que divergiram em muito no ímpeto missionário, que forjaram caminhos diversos com suas ações, mas terminaram suas vidas num mesmo holocausto de sacrifício e amor às causas que defenderam com verdadeiro ardor missionário. Tornaram-se pilares da Igreja de Cristo.

Na atual conjuntura da realidade latino-americana, o representante de Cristo tinha que ser um dos nossos. Muitos dizem: “Esse Papa não me representa”. Muitos se interrogam: “Pode vir algo de bom de Nazaré?” Mesmo assim, Brasil e países circunvizinhos assumem a dianteira na obra evangelizadora deste século, são hoje o maior reduto de cristãos no mundo. Mas aqui Pedro é Paulo e Paulo é Henrique. Nosso Paulo de Tarso está bem representado na figura extasiante de um Pedrinho qualquer, um Casaldáliga da vida que a escola europeia nos cedeu milagrosamente numa época de trevas e cegueiras sociais. Nosso Pedro aqui também era pedra e, como D. Henrique de Coimbra lá do reino português, que aqui inaugurou o primeiro altar de sacrifícios e com nossos indígenas e descobridores, celebrou nossa primeira missa, fez soar em nossos ares tupiniquins o nome do Cristo Redentor. D. Soares era o desbravador da tradição apostólica. Então está dito. Pedro/Paulo assumiu nossos samaritanos, excluídos e marginalizados. Henrique/Pedro cuidou “das ovelhas perdidas de Israel” e manteve a unidade apostólica ao redor da sã doutrina. Ambos são hoje os pilares dessa igreja latino-americana encarnada numa realidade de florescente importância que a Igreja de Cristo escreve em meio à pandemia dum mundo asfixiante, quase agonizante. Na vida de ambos impera a verdade primeira da fé: Cristo é único na sua diversidade teológica. Ou seja: sua Igreja não perde a unidade na diversidade dum mundo em conflito permanente.

Enquanto Pedro, o sucessor, a pedra fundamental, encerrou sua vida com a cruz inversa plantada no chão santo da futura sede universal da Igreja de Cristo no mundo, enquanto esse Pedro recebeu todas as honrarias de chefe e zelador das tradições apostólicas, Paulo, o perseguidor voraz e diligente do primeiro momento, aquele que buscou sua verdade como cego num tiroteio de  calúnias e difamações, um dia perdeu a cabeça por abraçar sua nova causa com coragem e profetismo. Sua honra foi ser sepultado em lugar ermo, extramuro da realidade romana… Nossa Paulo, que aqui era Pedro, também foi sepulto despido de qualquer honraria, às margens de um Araguaia pouco conhecido no mundo. Nosso Pedro, que aqui era Henrique, recebeu a graça de ser sepultado na catedral que gerenciava, em Palmares, zona da mata pernambucana, terra indígena e religiosa por excelência. Um sob a terra que margeava a realidade dos excluídos, outro sob a laje dos muitos túmulos que nossa tradição constrói. Mas ambos fiéis ao testamento e testemunho que nos deixaram.

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]

 

 




Diocese de Assis

Se lhe perguntássemos com qual dos títulos gostaria de ser conhecido sua resposta seria um sonoro “Nenhum”. Se subvertia a qualquer espécie de honra ou tributo pessoal. Sobre si mesmo um dia escreveu: “Me chamarão subversivo. E lhes diria: eu sou. Por meu povo em luta, vivo. Com meu povo em marcha, vou”. Seu anel de tucum e seu chapéu de palha ou boné faziam as vezes de seus símbolos eclesiásticos, dos quais só a estola não destoava da tradição apostólica. Bispo por ordem clerical, mas pastor sobretudo. Poeta pela veia sentimental, mas profeta. Profeta pela voz das denúncias, porém sempre um suave poeta em paz com seu povo.

Uma Paz questionadora, insubordinada, pedra no sapato de muita gente. Um revolucionário da inquietude, da mística sempre em ebulição no meio da massa disforme, desigual. Pedia em oração que Deus não permitisse cruzar os braços diante de qualquer injustiça. Viu seu colega sacerdote ser morto numa delegacia, quando ambos tentavam defender uma mulher espancada arbitrariamente. Então escreveu: “Dá-me Senhor, aquela Paz inquieta/ que denuncia a Paz dos cemitérios/ E a paz dos lucros fartos/ Dá-me a Paz que luta pela Paz”.

Pastor poeta. Muitos torciam o nariz pela ação sempre incômoda dum “bispinho” do interior, de uma simples prelazia encravada no sertão mato-grossense, onde chegou para fundar uma missão em meio a indígenas e marginalizados. Lá chegando encontrou quatro bebês mortos, dentro de caixas de sapatos na soleira de sua casa. Uma velada ameaça. Foi o estopim de um episcopado em defesa daquele povo oprimido, massacrado e ironicamente vítima da concentração fundiária naquela região. Sua verve de poeta explodiu em versos tintos de vermelho, de paixão por esse povo. Escreveu a primeira das denuncias que marcariam seu episcopado, então acusado de ação comunista. Não tinha outro caminho. Sua situação era tão caótica que sentiu na pele as agruras do povo, passou necessidades, sofreu perseguições e incompreensões até dentro da própria Igreja. Um dia chegou a celebrar com “cachaça e bolachas”, por falta absoluta do “pão e vinho” tradicionais. Mas não perdeu a essência do ato místico, onde realmente o essencial era invisível, a presença era a essência naqueles símbolos fora dos padrões. Sua poesia se transubstanciava na oração consagrada de seus poderes sacerdotais.

Pastor profeta. Em vez da mitra, um chapéu. O ouro do anel tinha a cor do coquinho silvestre. O báculo era um cajado indígena. Acusado de subversivo, foi marginalizado socialmente, a ponto de muitos desejarem sua expulsão do país. Mesmo assim, não se intimidou. Denunciou, anunciou, como todo bom profeta, a ponto de não temer as ameaças de morte que muitos lhe fizeram. Sua poesia tornou-se sua voz profética e inibidora. “Eu morrerei em pé, como as árvores. Me matarão em pé. O sol, testemunha maior, imprimirá seu lacre sobre meu corpo duplamente ungido. De golpe, com a morte, se fará verdade, a minha vida. Por fim, terei amado”. E amou até o fim: “No final do caminho me dirão: – E tu, viveste? Amaste? E eu, sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes”.

  1. Pedro Casaldáliga. O catalão radicado no Brasil desde 1968 – e que nunca mais voltou para sua terra natal – morreu neste 8 de agosto de 2020, aos 92 anos. Bispo emérito, vinculou seu nome em definitivo aos pobres da prelazia de São Félix, às margens do rio Araguaia. Seu contraditório não foi pertencer a uma corrente de ação libertadora na igreja latino-americana, mas de ter sido, simplesmente, pai dos pobres e exercer seu pastoreio com uma ação profética, poética, radicalmente cristã. Descanse em Paz, na sua inquietude.

WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]