1

O legado de Mário Covas ainda vive entre nós

No último domingo, dia 21 de abril, Mário Covas completaria 94 anos de vida. Relembrar sua vida é resgatar uma parte importante de nossa história. Ele foi exemplo de homem público e estadista, deixando um legado não apenas das políticas públicas que implantou, mas também da coerência com que conduziu sua trajetória política.

Tive o prazer de conhecê-lo ainda muito jovem. Tinha 15 anos quando telefonei para o diretório do PSDB de São Paulo e ofereci minha casa para ser ponto de entrega de materiais da campanha de Mário Covas para presidente. Daquele dia em diante, nossas vidas se cruzaram muitas vezes e pude acompanhar de perto suas ações.

Covas elegeu-se pela primeira vez em 1962 para o cargo de deputado federal, pelo PST, e em 1965 tornou-se um dos fundadores do MDB, partido que nascia com a corajosa missão de fazer oposição ao regime militar. Em 68, assumiu a posição de líder da bancada oposicionista na Câmara dos Deputados e pouco depois foi cassado, chegando a ficar preso por 10 dias em um quartel da Aeronáutica, em São Paulo. Nesse período, negou-se a pedir asilo político e deixar o país.

Após recuperar os direitos políticos, Mário Covas foi reeleito deputado federal e, em 1983, tornou-se prefeito de São Paulo com apoio do governador Franco Montoro. À frente da prefeitura, imprimiu na administração pública a marca socialista de sua atuação política, com desenvolvimento de amplo trabalho de atenção às periferias, promovendo um grande programa de asfaltamento e mutirões da habitação, além de melhoramentos dos serviços públicos de atendimento à população.

A atuação de Mário Covas na capital foi reconhecida pelos paulistas e, em 1986, foi eleito senador com 7,7 milhões de votos, resultado que na época significou a maior votação de um candidato a cargo eletivo na história do Brasil. Na Assembleia Nacional Constituinte, foi líder do partido e exerceu papel importante na defesa dos princípios socialistas em plenário.

Em 1988, Mário Covas compôs o grupo responsável pela fundação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e, poucos meses depois, assumiu a presidência nacional da sigla. Seis anos mais tarde, foi eleito governador do Estado de São Paulo, sendo reeleito no mandato seguinte. Ele modernizou a administração pública, recuperou as contas do estado, demitiu funcionários fantasmas, ampliou as políticas públicas de saneamento básico em todo estado e criou o Poupatempo, serviço que ainda hoje é sinônimo de sucesso e eficiência na gestão pública.

Durante o período em que esteve à frente do Governo de SP, Mário Covas enfrentou diversos problemas de saúde, até que, em 6 de março de 2001, veio a falecer. E esse é um dia do qual nunca esquecerei.

Eu estava na porta do hospital até por volta de 1 hora da madrugada, juntamente com demais amigos e correligionários do partido, que acompanhavam a internação com atenção. A notícia do falecimento veio nas primeiras horas da manhã, tomando conta do noticiário de todo o país e provocando enorme comoção pública.

Perder Mário Covas foi um golpe dilacerante. A cicatriz que ficou não nos deixa esquecê-lo. Especialmente no atual momento, em que enfrentamos uma enorme crise política provocada pela polarização raivosa e radical, a liderança equilibrada de Mário Covas faz falta ao país.

Obrigado, Mário Covas, por seu exemplo. Seu legado ainda permanece vivo e atual.

 

Wilson Pedroso é consultor eleitoral e analista político com MBA nas áreas de Gestão e Marketing




Inclusão e Dignidade: Transformando a Sociedade pela Integração da Síndrome de Down

 

No último dia 21, celebramos o Dia Internacional da Síndrome de Down, uma data que ressalta a importância de uma abordagem inclusiva, essencial para construir uma sociedade que valorize a diversidade e assegure igualdade de oportunidades para todos. Este momento nos convida a refletir sobre as nuances médicas, sociais e educacionais que permeiam a vida das pessoas com Síndrome de Down e a necessidade de superar perspectivas tradicionais que muitas vezes os marginalizam.

Com um olhar empático e compreensivo, podemos quebrar estereótipos e fomentar uma cultura de inclusão, onde pessoas com Síndrome de Down tenham a oportunidade de desenvolver suas capacidades e contribuir plenamente para a sociedade. Este processo demanda uma revisão crítica das políticas públicas, práticas educacionais e iniciativas sociais para integrá-las dignamente em todas as esferas da vida comunitária.

A Síndrome de Down é uma condição genética, conhecida como trissomia do cromossomo 21, que se caracteriza pela presença de um cromossomo extra. Essa característica afeta o desenvolvimento físico e intelectual, apresentando traços faciais específicos e habilidades intelectuais variadas. No Brasil, a prevalência desta condição nos anos de 2020 e 2021 foi significativa, reforçando a necessidade de políticas inclusivas e de apoio.

Reconhecendo nosso papel, é vital promover políticas que assegurem educação, emprego e programas de capacitação que valorizem as potencialidades desses indivíduos. Além disso, um sistema de saúde que ofereça suporte abrangente é crucial, incluindo acesso a terapias, tratamentos e cuidados preventivos personalizados.

A educação pública e a conscientização desempenham um papel central na mudança de percepção sobre a Síndrome de Down, visando a eliminação do preconceito e a criação de um ambiente inclusivo. O apoio às famílias, por meio de orientação, recursos e suporte financeiro, é fundamental para melhorar a qualidade de vida e enfrentar os desafios diários.

No contexto legal, garantir os direitos e enfrentar os desafios legais é essencial para a inclusão efetiva. As leis devem promover a igualdade e proteger contra a discriminação, assegurando acessibilidade, educação inclusiva, oportunidades de trabalho e participação social. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência é um exemplo de diretriz que busca promover esses direitos, embora sua efetivação ainda encontre obstáculos.

No cenário tecnológico atual, a inovação desempenha um papel crucial na facilitação da inclusão. Ferramentas tecnológicas, aplicativos educacionais e dispositivos assistivos têm o potencial de melhorar significativamente a qualidade de vida, a aprendizagem e a autonomia das pessoas com Síndrome de Down. Assim, o investimento em tecnologia assistiva e a garantia de seu acesso são passos importantes para eliminar barreiras e promover a participação ativa em todos os aspectos da vida.

A colaboração internacional é essencial para avançar na inclusão das pessoas com Síndrome de Down. Iniciativas globais e parcerias entre organizações internacionais, governos, ONGs e a sociedade civil podem impulsionar programas de conscientização, intercâmbio de boas práticas e políticas inclusivas. Essas ações conjuntas contribuem para a construção de um ambiente que valoriza a diversidade e a inclusão, não apenas como princípios éticos, mas como fundamentos de uma comunidade global interconectada e solidária.

Incorporar uma visão de inclusão global, apoiada pela tecnologia e pela cooperação internacional, não apenas reforça o compromisso com os direitos das pessoas com Síndrome de Down, mas também promove uma sociedade mais acolhedora e inclusiva para todos. Ao enfatizar a importância da inclusão em todas as esferas da sociedade, podemos assegurar que cada pessoa com Síndrome de Down tenha a oportunidade de viver uma vida plena, contribuindo para o enriquecimento cultural, social e econômico de nossas comunidades.

É necessária uma ação contínua e colaborativa de todas as esferas governamentais e da sociedade para superar esses desafios, promovendo a inclusão e respeitando a dignidade de cada pessoa com Síndrome de Down. Incorporar a perspectiva legal e de direitos reforça a necessidade de uma abordagem holística que assegure uma sociedade justa e igualitária para todos.

Mauro Bragato é deputado estadual.




As histórias que o padre conta

“Até a metade vai parecer que irá dar errado, mas depois dá certo!” Assim que terminou de pronunciar essas palavras, Jonas Abib, o padre, contou mais uma daquelas suas histórias que ensinavam verdadeiras lições de vida. Em seguida, com a voz cansada e as mãos trêmulas, abençoou os autores do livro de sua biografia, no meio da tarde do dia 13 de julho de 2022. Exatamente cinco meses depois, em 12 de dezembro do mesmo ano, ele faleceu, faltando menos de dez dias para completar 86 anos.

Na ocasião, a história que o padre contou foi a de um jogo de futebol entre São Paulo e Corinthians, no último domingo de agosto de 1949. Com 12 anos de idade e faltando uma semana para entrar no seminário, Jonas foi ao estádio do Pacaembu junto com o pai, o pedreiro Sérgio Abib, filho de pai libanês e mãe italiana, imigrantes.

Até o intervalo do primeiro tempo, era impossível prever o resultado. No final, ganhou o São Paulo, de 3 a 2. Foram três gols do astro Leônidas, o Diamante Negro! São-paulinos, pai e filho vibraram muito. Encerrada a partida, demorou mais de hora para chegarem em casa, no bairro da Cachoeirinha, lá longe, “a periferia da periferia, na época”, como contou o padre. Por pouco não tinham que percorrer a pé o caminho de terra que os levava à casa recém-construída, a primeira da família, nem pronta de verdade estava. Ônibus não havia naquele dia.

A morte de padre Jonas, em dezembro de 2022, e os meses muito difíceis que se seguiram levaram o projeto do livro a um ponto crítico, justamente na metade do período de um ano e meio dedicado à sua produção. O material jornalístico disponível era abundante e o padre já não estaria mais junto, revisitando com carinho as histórias que sentia sempre tanto prazer em contar. E nem poderia acompanhar o nascimento dos dezesseis capítulos da obra de mais de 500 páginas em que sua vida dialoga o tempo todo com sua fé em Deus, com a esperança e a vontade imensa de servir ao próximo.

 

Nem a morte, porém, impediu padre Jonas de contar as suas histórias, de mais de uma maneira. Histórias alegres, que teceram o arco de sua vida desde o nascimento, em Elias Fausto, interior de São Paulo, em 1936, até a sua morte, em Cachoeira Paulista (SP), na sede da comunidade religiosa que fundou: a Canção Nova. E histórias também tristes, não tão poucas assim.

Já aos 2 anos de idade teve que ser submetido às pressas a uma cirurgia dos olhos, em Campinas (SP), para não perder a visão. O pagamento do empréstimo que o pai precisou fazer durou anos, e obrigou a jovem família a se mudar muito cedo para a capital, em busca de trabalho. A família – pai, mãe e o filho Jonas – passa a morar nos primeiros tempos num porão, no bairro da Barra Funda. Pobre, muito pobre, era o que tinha condições de pagar.

Anos mais tarde, já na segunda metade da década de 1950, o pai arruma a mala para uma longa viagem até o Planalto Central, onde estava sendo erguida a futura capital federal, Brasília, inaugurada em 1961. O pedreiro Sérgio deixaria para trás por quatro ou cinco anos a esposa Josepha com a sua máquina de costura e seis filhos, dois meninos – o mais velho deles, Jonas, no seminário – e quatro meninas, a caçula mal tendo aprendido a andar.

O rosário completo das histórias mais sofridas de padre Jonas fala de doenças e cirurgias diversas e de muitas idas ao hospital, com uma frequência impressionante nos últimos anos de sua vida, até a morte, decorrente de um câncer. Inclui ainda um período dos mais difíceis – “terrível”, na expressão do padre – que desde São João da Cruz (1542-1591) se conhece pelo nome de “noite escura da alma”. Em alguns dos momentos mais dramáticos, parecia o fim. Já não conseguia rezar, perdera o sentido das coisas, se perguntava se tinha valido a pena a vida até então, tanta coisa feita, tanto sonho realizado!

Mas Jonas Abib, que nunca reclamava de nada, se mantinha de pé, do jeito como muitas vezes se aguentava. Ele soube ler, inclusive, na mais profunda depressão – mesmo às vezes com os lábios cerrados de dor e com os olhos turvos pelas lágrimas – um sinal de que estava sendo provado, qual Jó, no exercício da fé, da misericórdia, da paciência e da coragem.

Morreu com a alma leve, qual passarinho, tendo combatido o bom combate, na expressão do apóstolo Paulo. Pouco tempo antes havia redigido, à mão, o último documento que quis deixar para a comunidade que fundou. Era sobre “o hábito do sorriso”. Morreu sorrindo, docemente, em sua casa, cercado de perto e de longe pelas pessoas a quem tanto amou na vida, tendo instantes antes recostado a cabeça no travesseiro do leito hospitalar após ter rezado a oração do Anjo do Senhor.

Dimas Künsch é professor universitário e escritor, autor do livro “O Padre: a História de Vida de Jonas Abib”, junto com a jornalista Renata Carraro.




Regulamentação, já: entregadores do iFood merecem respeito  

 

Durante a pandemia de Covid-19, a atuação dos aplicativos de entrega de comida cresceu exponencialmente no País. Apesar de o serviço ter sido essencial no período de crise sanitária, a falta de concorrência no setor, com pouquíssimas empresas que recebem o pedido na plataforma e realizam o serviço por meio de entregadores, trouxe inúmeros problemas. Só o iFood, por exemplo, detém 80% de participação no mercado brasileiro.

Esta gigante do segmento de delivery se apresenta como “parceira” dos restaurantes. Porém, utiliza práticas comerciais predatórias: cobra taxas de até 30% sobre o valor do pedido, se nega a compartilhar dados dos clientes e, ao admitir estabelecimentos irregulares em sua carteira de entregas, pode colocar em risco a saúde dos usuários e promover concorrência desleal.

O iFood, enfim, se tornou um mal necessário para a maioria do setor de alimentação fora de casa. Mas outro inconveniente chama a atenção de bares e de restaurantes. Trata-se do descaso com que as empresas de aplicativos no geral tratam os entregadores. 

Importante frisar que, mesmo retendo 30% do valor total do pagamento feito ao estabelecimento, o iFood ainda cobra uma taxa de entrega do consumidor. Ganha, portanto, dos dois lados. No entanto, se recusa a valorizar e a proteger, de forma mínima, os motoboys e os ciclistas que se arriscam, em meio às adversidades do trânsito, para o pedido chegar rapidamente na ponta e na mesma condição com que saiu para o consumo. 

O governo federal quer regulamentar a atividade dos entregadores. Trata-se de proposta nada mais do que justa, e necessária, sendo que as empresas que intermediam o delivery e exploram esse ramo de atividade devem assumir sozinhas o custo / investimento. Ocorre que, os estabelecimentos gastronômicos, afeitos às leis vigentes, já arcam com os encargos e o registro do profissional que atende ao telefone, daquele que prepara o prato, do garçom e do funcionário que embala o pedido – só para citar algumas ocupações. Então, por que os entregadores são os únicos sem quaisquer direitos, sem proteção social? 

O Planalto, no entanto, não avança nas conversações, alegando que o iFood se recusa a negociar. Ao que parece, a empresa não entende que o conceito de modernidade, oferecido por ela mesma, precisa se adequar à regulação de atividades trabalhistas. O Brasil, afinal, não é terra sem lei. Há regramentos, limites e garantias que devem ser obedecidos pelos empregadores.

A regulamentação dos entregadores de comida no País é extremamente urgente. Além da segurança de motoboys e de ciclistas, a comodidade dos clientes não pode estar associada à exploração desses trabalhadores, que, se pudessem, estariam, certamente, em profissões menos perigosas e insalubres e que gerariam dividendos maiores no fim de cada mês.

Talvez, o iFood não esteja interessado em dividir seus ganhos para garantir direitos à peça fundamental do sucesso do aplicativo: o ser humano, o cidadão, o trabalhador – que merece ter, não apenas respeito, mas, sobretudo, seus direitos garantidos – é uma questão de justiça!

 

Edson Pinto é diretor-executivo da Federação de Hotéis, Bares, Restaurantes e Similares do Estado de São Paulo (Fhoresp); presidente do Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes de Osasco, Alphaville e Região (SinHoRes); mestre em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC); e autor do livro “Lavagem de Capitais e Paraísos Fiscais” (Editora Atlas).




Digitalização da saúde e os desafios na relação plano e consumidor

 

 

A digitalização da saúde, que compreende o uso de recursos tecnológicos e de Tecnologia da Informação (TI) para fins médicos, é um fenômeno que a cada ano se consolida e expande em todo o país. Grande responsável por essa aceleração foi a pandemia de Covid-19. Apenas entre os anos de 2020 e 2021, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Telemedicina e Saúde Digital, foram realizadas mais de 7,5 milhões de consultas por telemedicina. E de lá para cá, a aderência é crescente, inclusive entre usuários de planos de saúde.

No contexto da saúde suplementar, a digitalização da saúde pode envolver mais que a realização de teleconsultas, incluindo aí a implementação de prontuários eletrônicos, que viabilizam a disponibilização de informações dos pacientes de modo mais amplo e ágil nas redes de saúde, e até mesmo o uso de Inteligência Artificial na relação entre médico, plano e paciente.

Nesse sentido, a legislação brasileira, por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os planos de saúde, tem se adaptado para incorporar e regular essas novas práticas. No caso da telemedicina, por exemplo, ela foi regulamentada de forma emergencial durante a pandemia e, posteriormente, passou a ser objeto de regulamentação específica, permitindo que consultas, diagnósticos e até mesmo prescrições pudessem ser realizadas à distância.

Agora, em conjunto com essa legislação, a digitalização da saúde também deve ser acompanhada pelo que estabelece a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que determina o respeito aos princípios da confidencialidade, privacidade e segurança dos dados dos pacientes. Assim, os planos e os prestadores de serviços de saúde devem garantir a proteção dos dados pessoais, adotando medidas técnicas e administrativas adequadas para prevenir acessos não autorizados e situações de vazamento de informações. A segurança dos dados se apresenta, assim, como um fator a ser tratado com rigor e investimento de quem atua no setor.

Há, também, outro ponto de atenção: a digitalização não deve restringir o acesso dos usuários aos serviços de saúde. Os planos de saúde devem assegurar que a oferta de serviços digitais seja um complemento e não uma substituição ao atendimento presencial, garantindo que todos os usuários, independentemente de sua familiaridade com a tecnologia ou acesso à internet, possam receber atendimento adequado. Os usuários têm o direito de ser informados sobre as modalidades de atendimento disponíveis, incluindo as opções digitais, e devem consentir de forma livre e esclarecida sobre a utilização desses serviços.

A escolha pelo tipo de atendimento deve ser definida pelo paciente, respeitando-se sempre a autonomia do indivíduo e as diretrizes clínicas para cada caso. É importante ressaltar que diversas situações de não conformidade com esse quesito têm acabado na Justiça, com decisões favoráveis aos contratantes dos convênios médicos.

Sem dúvidas, a digitalização da saúde traz boas oportunidades e alternativas para seus usuários. A telemedicina veio para ficar e deve continuar ganhando espaço nos próximos anos. O avanço da tecnologia e a evolução da Inteligência Artificial favorecerão upgrades nesse formato de atendimento médico, o que deve trazer boas experiências para pacientes e para médicos, não só no atendimento quanto também nos cuidados e prevenção à saúde.

Agora, para que tudo isso funcione como se espera, também é fundamental que os profissionais do direito que atuam nessa área estejam atentos às constantes e necessárias atualizações legislativas e regulamentares, bem como às discussões éticas e jurídicas que surgem com a evolução tecnológica na saúde. A digitalização traz benefícios significativos para a prestação de serviços de saúde, mas também impõe desafios relacionados à proteção de dados pessoais e à garantia dos direitos dos pacientes.

 

Natália Soriani é especialista em Direito da Saúde e sócia do escritório Natália Soriani Advocacia

 




Desafios da proteção de dados e a fraude na saúde: uma questão de bilhões de reais

 

 

 

Segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), a partir de pesquisa realizada pela consultoria Ernst &Young (EY), R$ 34 bilhões dos gastos das operadoras médico-hospitalares com contas e exames, em 2022, foram consumidos indevidamente por fraudes, como, por exemplo, reembolso sem desembolso, além de desperdícios com procedimentos desnecessários no país.

No ano passado, a imprensa deu um bom espaço para casos de empresas que demitiram colaboradores por justa causa. Essas demissões foram fundamentadas juridicamente por práticas fraudulentas, infração ética, quebra de confiança na relação de trabalho, violação das políticas internas, entre outros pontos.

E um questionamento ganhou a cena: como essas empresas tiveram conhecimento das ações envolvendo, inclusive, questões de saúde de seus funcionários? A utilização de informações sensíveis precisa acompanhar princípios legais defendidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A legislação impõe que sejam considerados elevados padrões de segurança de informações pessoais. Porém, embora a LGPD imponha limitações ao acesso e ao uso de dados em saúde, existem métodos legais que as organizações do setor e as companhias podem adotar para gerenciar os planos de saúde e otimizar as suas operações.

As empresas contratantes de convênio médico, por exemplo, podem monitorar a utilização dos seus colaboradores e dependentes, é um método que passa pelo consentimento no uso dos dados. Porém, é importante ter transparência e governança para implementar essa supervisão, é necessário que todos saibam o momento que essas informações serão utilizadas e compartilhadas.

Outro método que também pode ser adotado é a parceria das organizações de saúde com entidades autorizadas para acessar e processar determinadas informações dos beneficiários, sempre em conformidade com a LGPD.

Hoje, mesmo com essas possibilidades de gerenciamento do sistema, o setor da saúde está passando por um momento turbulento, com a sua sustentabilidade fortemente ameaçada. Por isso, o combate às fraudes tem que ganhar cada vez mais espaço. Afinal, temos aí uma questão de bilhões de reais. As perdas prejudicam a sinistralidade, o desempenho das operadoras e impactam diretamente as mensalidades dos planos de saúde.

Entidades do setor, como a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), têm divulgado amplamente informações sobre como utilizar corretamente o convênio médico, apontando situações de violação que podem levar o usuário a perder seu benefício ou responder a um processo criminal. Por exemplo, emprestar carteirinhas, fraudar reembolsos, falsificar pedidos médicos, entre outros.

Alegar desconhecimento das regras do jogo já não cabe mais! Precisamos achar soluções para os desafios enfrentados na gestão de colaboradores e benefícios empresariais perante a LGPD.

 

 

Claudia Machado é VP de Benefícios da Howden Brasil, corretora especializada em seguros de alta complexidade, presente em mais de 50 países.




O País dos Golpes

 

A ideia de que a Lei é o conjunto de decisões tomadas pela sociedade e que sustenta seus valores comuns e, por isso, deve ser obedecida por todos, não teve uma grande aceitação no Brasil ao longo de sua história. Colônia de exploração, os grupos que foram se consolidando por aqui viram essa terra e o seu povo como meios ou obstáculos para seus interesses, nunca como partes de um projeto comum, no qual cada um dá sua cota de sacrifício e todos usufruem o que produziram coletivamente. Por isso, o Brasil é o país no qual os ricos acham que as políticas afirmativas são uma forma de “privilégio” para os pobres, e reclamam disso. No Dia Internacional da Mulher, ouvi de um homem branco e rico: “acho injusto que não tenha um Dia do Homem”. E emendou, cheio de ira cívica: “depois essa gente ainda vem com essa conversa de igualdade”.

O golpe de Estado é a expressão dessa ausência de espírito coletivo. Quando a lei afeta os interesses, põe em risco os privilégios consolidados por anos e anos de exploração, a Lei é que padece. Ela não é um limite que pertença ao ethos  social, mas um empecilho tolerado parcialmente. Até quando não é mais. E então vem o golpe.

Observem uma breve lista dos golpes nacionais que tivemos desde que o Brasil produziu sua primeira Constituição como nação independente. Ficam de fora os milhares de golpes nas leis estaduais e municipais e nas regras fundamentais que são simplesmente ignoradas, como a inviolabilidade do domicílio ou a presunção de inocência ou a proibição de castigos físicos ou da prática de tortura, passando pelo trabalho análogo à escravidão, entre tantos outros.

Atendo-se apenas aos golpes de Estado, temos: em 1823, um ano após a Independência, o próprio Imperador dá um golpe, fecha a assembleia constituinte e justifica: “a lei deve ser digna do país e de mim”. Prende os deputados e impõe sua própria constituição, feita à sua imagem e semelhança. Em 1840, diante de um quadro de agravamento social, com a população pobre exigindo direitos, os Liberais e Conservadores se unem para salvar seu “modo de vida” e burlam a constituição para entregar o poder ao menino Pedro de Alcântara, com 14 anos e meio. Pedro governaria, mantendo a escravidão, principal ativo das elites rurais, por 48 anos dos seus 49 anos à frente do país.

Em 1889, outro golpe, o primeiro perpetrado pelos militares, inicia a República. Logo a seguir, Deodoro, o primeiro marechal presidente, fecha ilegalmente o Congresso. Na sequência, Floriano, recusa a obedecer a Constituição e se nega a marcar novas eleições. Pouco depois, florianistas tentam matar o primeiro presidente civil do país, Prudente de Morais. A República começa fervendo em meio a disputas de grupos civis e militares pelos espólios da Monarquia. Quanto à Lei, ora, a Lei…

Depois de um período de calmaria, com o arranjo pelo alto firmado pelos cafeicultores e militares funcionando razoavelmente, a ideia do golpe de Estado volta com força nos anos 20: os jovens tenentes se rebelam para “moralizar” o país e acabar com a corrupção, devolvendo a Nação ao Estado e ordem e progresso. Por meio da Lei? Não, das armas. Em 1930, o golpe se consuma e mais um presidente perde o mandato pela força. Assume o gaúcho Getúlio, um civil apoiado por militares. Em 1932, há uma guerra civil, com os paulistas tentando, pela força, retomar as rédeas do país. Em 1935, os comunistas têm a sua chance, sem sucesso. Em 1937, o próprio Getúlio dá um golpe para governar com mais liberdade, porque a Lei o atrapalhava. Em 1938, os integralistas tentam matá-lo, mas não conseguem. Em 1945, os militares param de apoiá-lo e Getúlio cai.

Contaram quantos golpes e tentativas de golpe? Perderam-se nas contas? Calma, que tem mais. Em 1954, Getúlio é acuado por um golpe civil-militar e suicida-se. Na sequência, outra vez, civis e militares se unem para impedir a posse de Juscelino, mas o ministro da Guerra, um raro legalista, impede a aventura; de qualquer forma, Juscelino sofre duas outras tentativas de golpe, em Aragarças e Jacareacanga, mas sobrevive e termina o mandato. O sucessor, Jânio, dura 7 meses e renuncia. E lá vem mais golpe. Os militares tentam impedir a posse do vice, João Goulart. O país pega em armas, dividido. A solução parlamentarista alivia as tensões. Até 1964, quando, outra vez, militares e civis se unem para alterar a ordem e adequá-la aos seus interesses. Mais um golpe.

Nos 21 anos de regime militar, a ideia de obediência às regras e à Lei foi história pra boi dormir. Ocorreram vários golpes dentro do golpe, como o Ato Institucional número 2, que alterou arbitrariamente a Constituição, proibindo a eleição direta de presidente e fechando os partidos existentes; ou o Ato 5, que fechou o Congresso e suspendeu o habeas corpus. Em 1969, os militares impedem, inconstitucionalmente, a posse do vice, Pedro Aleixo. Enfim, uma bagunça sem fim.

Quem conhece um pouco a nossa História não se surpreende com a dificuldade profunda de muitas autoridades e de parte das elites em respeitar as regras do jogo, com apoio animado de amplos setores da sociedade, particularmente dos setores médios, sempre insatisfeitos e sempre temerosos de suas posses e posições sociais. O que surpreende é que não há, ainda, em pleno século XXI, uma luz no fim desse túnel. Evoé, novos golpistas!

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso e Colégio Positivo.

@profdanielmedeiros




Bolsonaro está brincando com a sua liberdade?

 

 

O jornal norte-americano The New York Times divulgou que o ex-presidente Jair Bolsonaro passou dois dias na embaixada da Hungria. Ele permaneceu no local entre os dias 12 e 14 de fevereiro, portanto, logo após a busca e apreensão determinada pelo ministro Alexandre de Moraes (08/02), em pleno carnaval. O que pretendia Bolsonaro com a sua hospedagem na embaixada?

Soa no mínimo estranha sua hospedagem na sede da embaixada da Hungria, localizada no território brasileiro. Conforme as imagens divulgadas, Bolsonaro leva até seu próprio travesseiro para dormir no local. Não podemos nos esquecer que o ex-Presidente  mora em Brasília, local da sede das embaixadas de todos os demais países, o que torna ainda mais estranha a situação narrada pelo The New York Times.

Não causa estranheza, por outro lado, a escolha pela embaixada da Hungria, uma vez que a proximidade entre Bolsonaro e o primeiro-ministro Viktor Orbán é inequívoca.

Prova disso, para além das mútuas visitas entre os políticos, há que se destacar que o primeiro-ministro postou, em suas redes sociais, mensagem de apoio a Bolsonaro, no dia da busca e apreensão (08/02), com os seguintes dizeres: “Um patriota honesto. Continue lutando, senhor presidente”.

Cumpre lembrar que a decisão do ministro Alexandre de Moraes determinou a entrega dos passaportes dos envolvidos, inclusive do ex-presidente, e proibiu que se ausentassem do país. Ao ingressar e permanecer na embaixada por dois dias, teria Bolsonaro descumprido a medida cautelar diversa da prisão preventiva?

Para responder essa indagação há de se entender a natureza jurídica da embaixada.

Pois bem.

Em síntese, a embaixada é a representação oficial de um governo dentro do território de outra nação

Extrai-se da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961, em seu artigo 22, que: “1. Os locais da Missão são invioláveis. Os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do Chefe da Missão. 2. O Estado acreditado tem a obrigação especial de adotar todas as medidas apropriadas para proteger os locais da Missão contra qualquer instrução ou dano e evitar perturbações à tranquilidade da Missão ou ofensas à sua dignidade. 3. Os locais da Missão, seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da Missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução”.

Portanto, a embaixada é um local inviolável, não podendo os agentes do Estado receptor ingressar em suas dependências sem a permissão do chefe da missão diplomática. No entanto, tecnicamente, a embaixada não é território estrangeiro.

Dessa forma, em uma análise preliminar, Bolsonaro não descumpriu a determinação do ministro Alexandre de Moraes, na medida em que não deixou o território brasileiro, haja vista que a sede da missão diplomática não constitui extensão do território da Hungria.

Todavia, em que pese não restar demonstrado que Bolsonaro se ausentou do país, a estadia na embaixada da Hungria, localizada na mesma cidade de sua residência, merece ser analisada  “cum grano salis”.

Ao tomar essa medida inusitada de se hospedar, por dois dias, em uma embaixada estrangeira localizada no território brasileiro, Bolsonaro sinaliza que buscava proteção de um aliado internacional, com escopo de ilidir eventual prisão preventiva.

A conduta do ex-chefe de Estado brasileiro, por si só, pode resultar na decretação de sua prisão preventiva? Para responder este questionamento há de se examinar as causas autorizadoras da custódia cautelar.

A norma de regência das prisões preventivas estabelece, como é cediço, que “poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Com efeito, para a decretação da prisão preventiva devem estar presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, ou seja, prova da materialidade delitiva, indícios suficientes de autoria e o perigo atual gerado por estar em liberdade.

Nos fatos imputados ao ex-presidente, não deixam dúvidas da ocorrência dos crimes dos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, na espécie, bem como é patente a presença dos indícios suficientes de autoria. Cumpre examinar se em liberdade o ex-presidente poderia comprometer a aplicação da lei penal, fugindo do país ou se homiziando em uma embaixada de aliado internacional. Assevere que o risco de fuga deve estar fundado em circunstâncias concretas, não podendo ser presumido. Deve ser atual, ou seja, o risco deve ser presente, não pautado em circunstâncias do passado ou por suposições futuras.

A dinâmica dos fatos – busca e apreensão no dia 8 de fevereiro e hospedagem na embaixada da Hungria entre os dias 12 e 14 de fevereiro – indica que Bolsonaro pretendia buscar asilo político, o que impediria a imediata aplicação da lei penal.

Naquele momento, a decretação da prisão preventiva era perfeitamente possível.

Porém, ao deixar a sede da missão diplomática húngara, o risco da não aplicação da lei penal reduziu sensivelmente.

Cumpre agora, com um olhar para o momento atual, mensurar, com as cautelas de estilo, se há risco de Bolsonaro se furtar da aplicação da lei penal, mediante a fuga para outro país ou o asilo na sede da embaixada de uma missão diplomática.

Para se decretar a prisão preventiva, em tese, deve estar evidente a possibilidade de Bolsonaro empreender fuga. Qual a demonstração atual e concreta que o ex-presidente está em vias de se evadir do distrito da culpa?

Aparentemente não há, atualmente, risco na manutenção em liberdade do ex-presidente. No entanto, nada impede que a Polícia Federal, diante de outros elementos, vislumbre risco atual e concreto para aplicação da lei penal com a permanência em liberdade de Bolsonaro e represente pela prisão preventiva. O ministro Alexandre de Moraes, em decisão proferida na última segunda-feira(25), determinou que Bolsonaro esclareça os motivos que o levaram a se hospedar na embaixada húngara.

Marcelo Aith é advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca

 

 




Fado

A ironia do tempo: no domingo, a direita brasileira cantou a plenos pulmões o verso do Chico: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. Afinal, a vitória das direitas – a mais racional, tradicional, sob o nome de Aliança Democrática,  e a mais bizarra, chamada – seguindo a cartilha da novilíngua de Orwell – de “Chega”, desbancaram o Partido Socialista, há oito anos no poder, nas eleições antecipadas depois da demissão do Primeiro-Ministro, enrolado em meio a acusações de corrupção. Aliás, outra ironia – já que as esquerdas sempre pregaram a lisura na gestão pública –  outra canção do Chico: “Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações.”

O resultado, comemorado por bolsonaros, maltas, malafaias et caterva, não é propriamente uma vitória acachapante, mas uma vitória suficiente, já que garante uma desestabilização inegável do bipartidarismo português, vigente, em meio a arranjos (muitas vezes à socapa) desde a revolução dos Cravos, o movimento dos capitães que acabou com a ditadura que relegou Portugal à condição de um pária europeu, um país melancólico, de favas e fados e vilas de senhoras de luto permanente com rosários nas mãos e imagens de António de Oliveira na parede caiada e sem viço. 

Agora, sobre o futuro, nem a Deus pertence, mas aos arranjos que envolverão, à direita – PPD, PSD, CDS, PP, PPM – com a Iniciativa Liberal, e /ou com o Chega, que alcançou a posição de terceira força política do país, ganhando a projeção que o Vox tem na Espanha, ou o Partido pela Liberdade na Holanda, ou mesmo o Alternativa para a Alemanha. Luís Montenegro, líder da coligação vencedora, a AD, prometeu que não colocaria o Chega no governo. Mas a realidade pode mudar suas convicções. Sem a extrema direita, a Aliança Democrática governará como minoria, como Lula faz por aqui, no Brasil, tendo que matar um leão por dia, e, mesmo assim, sem conseguir escapar de extensas e dolorosas mordidas. No caso de Portugal, isso significa a possibilidade de novas eleições, o que pode gerar um impasse como o que a Bélgica e Israel viveram. É o preço de um sistema de governo pensado para ser bipartidário e não a colcha de retalhos no qual a política portuguesa se transformou.

Por outro lado, o Partido Socialista – replicando outro verso do genial Chico Buarque: “Eu semeio o vento, na minha cidade, vou pra rua e bebo a tempestade” – recebeu uma reprimenda dos eleitores, e perdeu mais de meio milhão de votos – 10% do total de eleitores que foram às urnas. O tempo no poder – quase 9 anos – sempre cobra um preço, mas a renúncia do primeiro ministro em meio a acusações de corrupção enquanto os salários médios dos portugueses são um dos menores da União Europeia, somado a uma brutal gentrificação de suas principais cidades, tem provocado um efeito “manifestações de 2013”, sem os black blocs, mas com a mesma indignação. Os brazucas que o digam, vítimas que têm sido em diversos episódios de ódio incontido e de desprezo declarado. Todo esse caldo é um prato cheio para o novo fascismo que põe em risco a Democracia no século XXI. Resta torcer que os versos do Chico não se tornem realidade e não tenhamos de ver e viver “outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta”  outra vez.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.




Engrenagente

 

Nos anos 1980, no auge dos movimentos operários no Brasil, Chico Buarque de Hollanda cunhou um termo curioso para definir os trabalhadores nas linhas de montagem: “engrenagente”. A discussão, portanto, não é de hoje, mas nunca foi tão urgente abordar a colonização da vida pelo mundo laboral.

É certo que o trabalho é definidor de quem nós somos. Não raro, se alguém pergunta “quem é você” ou “o que você faz”, elaboramos respostas relacionadas à nossa profissão. Somos médicas e médicos, e nos orgulharmos disso. O problema surge quando a carga excessiva e o estresse agudo da labuta nos tornam mais engrenagem e menos gente.

A classe médica é uma categoria profissional bastante suscetível ao esgotamento físico e mental – e, por consequência, à síndrome de burnout. O trabalho na área da saúde exige tomadas de decisão complexas, que desgastam as pessoas física e psiquicamente. Pesquisas recentes, a propósito, apontam que médicos lidam com níveis de estresse e carga emocional mais elevados do que a média da população.

O desassossego inerente à rotina de quem lida, muitas vezes, com o sofrimento e a morte de seus pacientes cria condições propícias para o esgotamento. As altas taxas da síndrome de burnout entre médicos são o retrato de um sistema que nos sobrecarrega sem piedade.

As rápidas transformações e a expansão da Medicina trouxeram também desafios inéditos. Ao ônus associado aos trabalhos do cuidado se somam fatores como o excesso de burocracia, as longas jornadas, o desrespeito entre colegas, a remuneração insuficiente, a falta de autonomia clínica e o aumento da informatização na prática médica, com o uso desmedido das novas tecnologias.

Um estudo conduzido em 2020 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com 1.054 profissionais da saúde – médicos, técnicos de enfermagem, enfermeiros e psicólogos, entre outros– revelou um cenário estarrecedor: mais da metade da amostra apresentava sinais alarmantes de burnout e sintomas sugestivos de depressão. Como reação, não é incomum que esses trabalhadores passem a se sentir culpados por não conseguirem abraçar tantas demandas.

A autocobrança é uma constante dos nossos tempos; a busca obstinada pelo bom desempenho e a sensação de que o dia tem (ou deveria ter) mais de 24 horas, por estarmos tão conectados, bombardeados por informações, nos cegam. Precisamos mesmo nos tornar super-humanos? Estamos desalentados, alheios àquilo que realmente importa.

É necessário cuidar dos que cuidam. Corrigir a rota, enxergar com mais clareza e focar nos nossos propósitos, encontrando um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Desacelerando, quem sabe, rebrilharemos o olhar. Só assim será possível quebrar as engrenagens e tratar, como se deve, gente como gente.

 

Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade