De que Estado estamos falando?
Quando leio os comentários e opiniões acerca da divulgação do déficit público pelo governo federal, tenho aquela sensação de que falta algo e não é pela qualidade das opiniões (de parte delas, pelo menos), mas sim pelo enfoque que essas análises dão a esse fato: Todas as opiniões, balizadas em números e projeções de crescimento econômico, tentam extrair desses mesmos números sínteses avaliativas sobre o sucesso ou fracasso do governo federal (tanto o atual, como o anterior). Porém o que me faz sentir a lacuna mencionada tem a ver, acredito, com a mudança paulatina de perspectiva que a esfera pública tem sobre o papel que o Estado Brasileiro deve ter na economia. Disso, é possível se extrair dois questionamentos: (1) Com relação à economia, o Estado serve para quê? E, atualmente, mais importante: (2) Nós queremos que o Estado continue servindo para isso?
Vamos tentar entender a primeira: Não sei se por vício profissional, toda vez que surgem questões dessa natureza, tento consultar a Constituição Federal para saber se, lá, há algo escrito a respeito e, nesse caso, há. Em relação à economia, a Constituição apresenta o Estado Brasileiro dentro de um modelo keynesiano, o que quer dizer que o Estado possui uma função distinta dos demais agentes econômicos. Trocando em miúdos, enquanto todos nós, pessoas e empresas, buscamos obter, através das relações econômicas, ganhos monetários por intermédio dos fatores de produç&atil de;o que detemos (capital, terra e trabalho, basicamente), o Estado se preocupa em manter o mercado saudável e funcional, com políticas de ajustes em pontos que o livre mercado efetivamente não consegue agir. Esses temas são variados e podem ser desde questões de redução de desigualdade social, até questões de combate a monopólios, cartéis econômicos, manutenção de livre iniciativa, etc.
As opiniões de especialistas também variam sobre o sucesso e os benefícios desse modelo e por volta do fim do século XX, esse debate, que ainda existe no âmbito científico, se politiza, resultando em uma apropriação ideológica, com todas as consequências de rotulação, intolerância e conclusões precipitadas que esse tipo de apropriação gera. Os mais liberais, ditos de direita, criticam essa abordagem econômica do Estado, dizendo que isso atrapalha a economia (mesmo que historicamente tenha salvado o capitalismo algumas vezes). Além disso, atribuem, muito equivocadamente, à preocupação com a redução das desigualdades sociais um traço “socialista” ou “comunista” a depender do fervor e do nível de ignorância de quem fala. Já aqueles mais progressistas (mas ainda capitalistas, frise-se) acreditam que o progresso e crescimento econômico só é possível se alguns alicerces sociais estiverem satisfeitos. Esses, considerados de “esquerda”, estão, quer se aceite ou não, mais alinhados com a perspectiva capitalista prevista na Constituição. Dessa forma, quando se enxerga o papel do Estado nessas lentes, não há nada de estranho em se gastar, pois o gasto se refere a um projeto de Nação (previsto no artigo 3º da Constituição Federal), em que o Estado arrecada e redistribui a partir das demandas próprias para a construção de um Brasil mais próspero e menos desigu al. Se todos estivessem de acordo com essa perspectiva, os textos sobre o déficit público deveriam estar muito mais preocupados com o que, e com qual qualidade esses gastos foram realizados e, daí sim, teríamos opiniões relevantes e construtivas acerca desse tópico.
Contudo, o que se vê, em alguns casos, é uma crítica, ainda incipiente e rasa, sobre essa atuação estatal. Críticas que relacionam quase que como sinônimos “gastos” e “privilégios” e, embora sem argumentações robustas, são relevantes por nos levar à segunda pergunta, pois mostram um certo descontentamento com o modelo vigente: Ainda queremos ser um Estado keynesiano? Essas reclamações são oriundas do povo brasileiro ou atribuídas ao povo de maneira retórica, masc arando interesses particulares?
Dentro desse contexto, então, temos duas formas de enxergar o déficit público de mais de 230 bilhões de reais: Ou como uma questão transitória que será minimizada a partir de maior e mais efetiva fiscalização com os gastos públicos, bem como pela redução de demandas específicas causadas por políticas públicas duvidosas, como bloqueio de precatório por lei, ou ainda, por antecipação de pagamentos desses mesmo precatórios, e, nesse caso, a vida segue; ou partimos do pressuposto de que o Estado é um estorvo à Economia e que o dinheiro destinado ao seu “sustento” deve se restringir a uma qu antia específica e o resto deve ser drasticamente cortado. Nesse caso, precisamos parar e rediscutir, desde o tamanho do Estado, aos benefícios pagos a servidores e políticos, incluindo o salário e a quantidade de verbas e emendas parlamentares pagas, o que abrange necessariamente aqueles dos que defendem o Estado Mínimo. Os dois, ao mesmo tempo, não dá.
[1] Vale lembrar que esse modelo econômico ganha força em razão da Crise de 1929 e ganhou modelos variados em diversos Estados contemporâneos, incluindo os EUA.
Jonathan Hernandes Marcantonio
Doutor em Direito pela PUCSP
Advogado empresarial em São Paulo