Descriminalização das drogas: Poderes em rota de colisão
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou no último dia 13 de março uma proposta de emenda à Constituição que inclui a criminalização da posse e do porte de drogas, em qualquer quantidade, na Carta Magna, a PEC 45/2023. Trata-se de uma evidente reação do Legislativo Federal ao Supremo Tribunal Federal (STF), que retomou, no início do mês, o julgamento da descriminalização de pequenas quantidades de cannabis, 60g ou 6 plantas fêmea. Em uma espécie de demonstração de poder, os senadores fizeram questão de enfatizar que cabe ao parlamento, e não ao Supremo, tratar do caso.
Alguns dados declarados pelo ministro André Mendonça, na ultima sessão do Supremo como, por exemplo, que 10g de cannabis fariam 34 cigarros, foram citados mais de uma vez pelos senadores durante a sessão, reforçando que o legislativo discorda inclusive da definição de pequenas quantidades, sejam elas quais forem, para excluir a ocorrência de conduta criminal.
Os favoráveis ao projeto e contrários à descriminalização, aliás, maioria entre os debatedores presentes na CCJ, destacaram que não há usuário sem traficante, de modo que não podemos descriminalizar ou legalizar – como alguns entendem ser o efeito prático do julgamento do Supremo – sem conceber um modelo de mercado regularizado. Se não há um modelo de mercado, o tráfico sai fortalecido, diante da perspectiva de um suposto aumento de consumo, apontado pelos senadores como supedâneo da descriminalização.
Como exemplo de argumentos pouco substanciais está o de que a maconha vicia e torna seu usuário violento ou desesperado, vendendo objetos de casa ou cometendo outros furtos, eventualmente trabalhando com tráfico, a fim de sustentar seu vício.
Com todo respeito, não nos parece haver, nas comunidades terapêuticas, pessoas viciadas apenas em maconha, que tenham perdido a capacidade de conviver em sociedade devido à cannabis. Em geral, esses internos são viciados em drogas muito mais perigosas, como cocaína, crack, drogas sintéticas e heroína. Essas sim, têm efeito devastador na existência dos indivíduos. A cannabis, não.
Um equívoco bastante comum é colocar os argumentos antimaconha no mesmo patamar dos que embasam o banimento de drogas mais “pesadas”, sintéticas, letais e altamente viciantes. A distinção é crucial para o avanço das discussões de forma sóbria e científica.
Importante destacar dois pontos fundamentais: o Supremo não pretende descriminalizar a posse de outras drogas, somente a da maconha. E especialistas estimam que apenas 10% dos usuários da maconha se tornem dependentes.
As comunidades terapêuticas também foram muito lembradas pelos nobres senadores na CCJ. É evidente que existe um lobby dessas entidades, contrárias à descriminalização, e que reagem negativamente até mesmo ao debate paralisado do PL 399/15, que trata da cannabis para uso medicinal.
Vale lembrar que essas ONGs arrecadam recursos públicos para atuar na internação e reabilitação de dependentes químicos. Os bastidores dão conta de que muitas dessas comunidades seriam “apadrinhadas” por parlamentares, que intermediam a chegada dos recursos financeiros, o que explica a ferrenha oposição a qualquer discussão, mesmo que seja somente da cannabis medicinal.
Os poucos senadores contrários ao mandato de criminalização defenderam a competência do Supremo, quando provocado por uma ação judicial, lembrando que a Corte tem por função “dizer o direito impulsionando para frente a sociedade”. Pontuaram também que existe uma questão social em evidência: o racismo estrutural que condena pobres negros e analfabetos como traficantes, tratando brancos alfabetizados como meros usuários. Como disse o senador Fabiano Contarato (PT ES), “temos que usar a palavra para apresentar o Brasil ao Brasil”, se referindo à realidade das pessoas em contraste com a percepção distante e distorcida dos parlamentares.
Segundo os dissonantes, que não aprovam a PEC, a inserção do mandato de criminalização não traria nenhum efeito prático verdadeiro na sociedade brasileira. Não mudaria a realidade do tráfico e da falta de segurança pública, nem neutralizaria a ameaça das drogas à saúde individual ou coletiva no Brasil. A simples criminalização é mais um reforço à politica falida e ineficaz da “guerra às drogas”. Se aprovada no plenário do Senado, a PEC segue para votação na Câmara. Em ambas as casas, precisará de quórum de pelo menos 3/5 dos parlamentares, em dois turnos.
O mais perigoso aspecto da iniciativa do Senado é que a inserção do texto justamente no artigo 5º da Constituição Federal irá colocar o tema dentre as cláusulas pétreas ou imutáveis da Carta Maior. Isso significa que ficarão bloqueadas quaisquer possibilidades evoluirmos no tema, no sentido da descriminalização de drogas menos nocivas ou em quantidades pequenas. Em outras palavras, não seria possível voltar atrás na decisão, retirando da sociedade brasileira, agora e no futuro, a chance de legislar e entender o tema de forma diferente.
Caso o STF aprove a descriminalização, o resultado do julgamento que começou em 2015 poderia ficar neutralizado pela redação da PEC, mantendo-se a posse de qualquer quantidade de droga como crime.
Quando o Supremo definir critérios objetivos para distinguir tráfico de uso, tese que já tem maioria entre os ministros, o Judiciário terá um parâmetro claro a partir de uma quantidade paradigma, que aliada aos demais elementos circunstanciais permitirá o melhor enquadramento de cada caso.
Portanto, temos um cenário em que os Poderes estão em caminhos diferentes e conflitantes sobre um tema tão importante para a evolução da nossa sociedade, que envolve saúde e segurança pública. O cenário atual parece ser que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está esperando o Supremo, que está julgando para dizer como deve ser aplicada a lei de repressão às drogas, especialmente para usuários. Entretanto, o Congresso, diante disso, que desde 2006 já decidiu que uso não é punível como crime, está jogando para a torcida e quer deixar claro que manda mais que o STF e que é contra as drogas. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.
Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann