Diocese de Assis
ENTENDER AS PEGADAS
Um camelo se perdeu no deserto. Seus proprietários o procuravam, quando cruzaram o caminho de um religioso. “Vistes um camelo por aí”? – lhe perguntaram. O interpelado foi logo descrevendo o animal: “Era cego da vista esquerda, manco da perna direita, sem um dente incisivo e ia carregado de mel em uma banda e trigo em outra”? Perfeito, esse era o animal! Ao que o religioso, para surpresa dos proprietários, respondeu: “Não, não o vi”. Irados, os homens prenderam aquele viajante e o levaram aos tribunais, acusando-o de roubo. Antes de condená-lo, o juiz quis saber como aquele réu descrevera tão bem o animal em questão. A resposta foi desconcertante: “Ora, ele comia a erva apenas de um lado da estrada, as pegadas da direita eram mais apagadas do que as da esquerda, deixava sempre um molho de ervas no meio de um bocado e as formigas de um lado e a abelhas do outro me contaram o que levava o camelo”…
Esse conto de Erasmo Braga (1877-1932) vem a propósito dos falsos julgamentos que corriqueiramente a vida nos impele a fazer. Nem sempre o óbvio é real. Nem sempre as evidências são cabais numa situação de suspeita. Julgar pelas aparências, no entanto, é atitude mais que corriqueira na sociedade. Um vendedor de automóveis me contou que, por pouco, não perdeu grandes vendas, porque o comprador se apresentou mal trajado e com barba por fazer. Era um rico fazendeiro. Já por outro lado, há casos pitorescos de assaltos bem-sucedidos com malandros de paletó e gravata. Recentemente, um falso pastor, com a Bíblia debaixo do braço, reuniu uma comunidade rural e, após simular orações, sacou sua arma e efetuou um assalto coletivo. O reluzente ouro pode ser um cobre de segunda.
A chave, o segredo para se evitar certas ciladas é interpretar corretamente as pegadas que deixam. Falo de fatos atuais. Um ditador, por exemplo, nasce da ingenuidade de um povo, que ignora a pata manca, a preferência pelo feno da esquerda (ou mesmo da direita), a mordida em falso… Pelas pegadas se conhece o animal. Transformar, da noite para o dia, um movimento guerrilheiro – que sequestra, mata, estupra (matar não pode, estuprar pode?) rouba e até trafica – em “exército de insurgentes” é matar um camelo e tentar escondê-lo na ponta de uma agulha. Não dá. Só mesmo apagando certas pegadas de sangue e intolerância, o que a história já não permite.
Aliás, a apoteótica libertação de duas pobres reféns, midiaticamente explorada, não é tudo nesta história. Esse camelo – o fato em si -, aparentemente perdido num deserto de muitos interesses, esconde algo mais precioso que suas sacas furadas de mel e trigo. O povo, religioso e sábio que é, nada roubou do latifundiário, o senhor dos anéis, o que se julga dono do mundo com seu petróleo e poder. Ao contrário, o povo… (caracas, não vive esse povo uma vida de camelo?). Pois então, este sabe onde pisa! E como pisa! Muitos que se imaginam reis em suas posses, soberanos acima do povo, me devolvem a pergunta: “Por que não te calas”?
Deixo a conclusão para Heitor Cony, da Folha. De pegadas ele entende. Seu artigo “Chávez e a mídia” assim termina: “O maior fato midiático da humanidade foi num tempo em que nem havia mídia. Um dissidente do judaísmo foi crucificado num morro ao lado de dois ladrões. Nos 2000 anos seguintes, esse fato, que poderia ter passado despercebido, dividiu a história em antes de depois, fez toneladas de textos e imagens invadirem o mundo e gerou detratores e mártires”. No entanto, muitos dizem seguir seus passos, mas não entenderam as mensagens ocultas em suas pegadas…
20 anos de Palavras de Esperança. Publicado em 16 de janeiro de 2008.
WAGNER PEDRO MENEZES [email protected]