Diocese de Assis
DONA ESPERANÇA
Ela passara a noite em claro. Aliás, muitas noites em claro!
Não é por que não tivesse sono. Nem tão pouco porque não tivesse tomado o remédio de pressão, de diabetes, de ácido úrico, de coluna, de bexiga e de ansiedade. Sono, até que ela tinha. Pra falar a verdade, tinha muito sono, aponto de viver cochilando sentada, durante o dia.
Não é por que tivesse medo. Ela não era mulher de medo. Pelo contrário, quando mais nova, quantas vezes teve que montar a cavalo com seu marido e buscar as rezes escondidas na caatinga; quantas vezes teve que tirar lenha no machado; quantas vezes teve que fazer a colheita sozinha do roçado, depois que o marido adoecera e ficara acamando; quantas vezes teve que andar léguas e léguas para fazer a feira da semana…
Dona esperança é uma mulher no alto dos seus 94 anos. Lúcida, mas, limitada fisicamente. Mãe de 13 filhos dos quais o mais velho morreu no parto; já tinha, até, nome: José. Os outros filhos, sobreviveram todos: dois filhos e uma filha, já casados, vivem na mesma cidade; os outros filhos, cinco homens e quatro mulheres, vivem pelo mundo. Migraram para as capitais de outros estados em busca de emprego e colocação, quando jovens; lá se casaram, tiveram filhos e, por lá mesmo ficaram. Vinham de vez em quando, por ocasião da novena do padroeiro e das festas de final do ano, mas, agora nem notícias dão mais. Somente um neto que ela criara até os 18 anos e que fora embora havia pouco tempo. Nem os que moravam na mesma cidade conseguiam tempo para ir vê-la na gratuidade. Iam sim, mas, quando chamados ou questionados pelos vizinhos. Ai sim, apareciam. Mas, depois que cumpriam a obrigação, desapareciam.
Como uma mulher dessa poderia dormir em paz?
A vida de dona Esperança era pura solidão e preocupação.
Não dormia porque não conseguia se desligar dos filhos e filhas, dos netos, bisnetos e tataranetos que estavam longe; que não davam notícia; que tinham adoecido; que isso; que aquilo; que aquilo outro…
O coração de mãe nunca descansa depois que tem filhos.
Essa é uma verdade que a natureza materna planta no coração da mulher-mãe e, não há remédio. É assim e, será para sempre!
Mas, espera ai! Abandono de uma mulher de 94 anos é crueldade; é flagrante insensibilidade e desprezo; é falta de atenção e cuidado; é desleixo e ingratidão… Isto é um crime; um matricídio.
Que outro nome poderíamos dar ao descaso em relação à própria mãe na fragilidade da idade avançada?
Pessoa de idade dá trabalho… cansa… pesa…?
E, qual ser humano não dá trabalho… não cansa… não pesa? Se é que podemos tratar assim, a condição de um genitor.
Enquanto isso, longe de qualquer justificativa ou desculpa esfarrapada, desgasta-se nas muitas noites em claro, a dona Esperança de 94 anos. Seu sofrimento tem nome: solidão e preocupação.
Infelizmente a movimentação da família grande e cheia de inquietação quando a dona Esperança vier a falecer. A comoção pela morte durará muito pouco ou quase nada porque, nos bastidores ou desavergonhadamente, nos corredores, nas portas e nos cantos do velório o assunto será apenas um: a herança, suas versões e seus desdobramentos.
Dito e feito, o féretro está sendo conduzido para o cemitério, para os últimos momentos de dona Esperança nessa terra e, o burburinho da herança ganhou acaloradas discussões, dissenções muitos algo mais. Infelizmente esta confusão ganhará muitos ringues e, todos serão perdedores. Mesmo que consigam pôr as mãos nas migalhas da herança material, não conseguirão, sequer, tocar a melhor herança dos pais feita de preocupações, atenção, cuidados, gestos, palavras… ao longo de toda vida, principalmente nas noites em claro.
Cuide dos seus pais. Valorize a sua família!
PE. EDIVALDO PEREIRA DOS SANTOS