Nos anos 1980, no auge dos movimentos operários no Brasil, Chico Buarque de Hollanda cunhou um termo curioso para definir os trabalhadores nas linhas de montagem: “engrenagente”. A discussão, portanto, não é de hoje, mas nunca foi tão urgente abordar a colonização da vida pelo mundo laboral.
É certo que o trabalho é definidor de quem nós somos. Não raro, se alguém pergunta “quem é você” ou “o que você faz”, elaboramos respostas relacionadas à nossa profissão. Somos médicas e médicos, e nos orgulharmos disso. O problema surge quando a carga excessiva e o estresse agudo da labuta nos tornam mais engrenagem e menos gente.
A classe médica é uma categoria profissional bastante suscetível ao esgotamento físico e mental – e, por consequência, à síndrome de burnout. O trabalho na área da saúde exige tomadas de decisão complexas, que desgastam as pessoas física e psiquicamente. Pesquisas recentes, a propósito, apontam que médicos lidam com níveis de estresse e carga emocional mais elevados do que a média da população.
O desassossego inerente à rotina de quem lida, muitas vezes, com o sofrimento e a morte de seus pacientes cria condições propícias para o esgotamento. As altas taxas da síndrome de burnout entre médicos são o retrato de um sistema que nos sobrecarrega sem piedade.
As rápidas transformações e a expansão da Medicina trouxeram também desafios inéditos. Ao ônus associado aos trabalhos do cuidado se somam fatores como o excesso de burocracia, as longas jornadas, o desrespeito entre colegas, a remuneração insuficiente, a falta de autonomia clínica e o aumento da informatização na prática médica, com o uso desmedido das novas tecnologias.
Um estudo conduzido em 2020 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com 1.054 profissionais da saúde – médicos, técnicos de enfermagem, enfermeiros e psicólogos, entre outros– revelou um cenário estarrecedor: mais da metade da amostra apresentava sinais alarmantes de burnout e sintomas sugestivos de depressão. Como reação, não é incomum que esses trabalhadores passem a se sentir culpados por não conseguirem abraçar tantas demandas.
A autocobrança é uma constante dos nossos tempos; a busca obstinada pelo bom desempenho e a sensação de que o dia tem (ou deveria ter) mais de 24 horas, por estarmos tão conectados, bombardeados por informações, nos cegam. Precisamos mesmo nos tornar super-humanos? Estamos desalentados, alheios àquilo que realmente importa.
É necessário cuidar dos que cuidam. Corrigir a rota, enxergar com mais clareza e focar nos nossos propósitos, encontrando um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Desacelerando, quem sabe, rebrilharemos o olhar. Só assim será possível quebrar as engrenagens e tratar, como se deve, gente como gente.
Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade |