Lacunas na lei da Política Nacional de Saúde Mental e o cenário pandêmico
No início do ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia em razão da disseminação do vírus da Covid-19. A partir de então, além da implementação de estruturas aos sistemas de saúde hospitalar, fez necessário a adoção global de medidas de prevenção e controle da doença, de modo que a melhor estratégia para barrar o espalhamento do vírus foi o isolamento social que culminou na restrição de circulação de pessoas, forçando impactos no cotidiano da sociedade, no setor econômico financeiro e na dinâmica política e cultural do país.
Com o avanço da pandemia no país e o crescente número de mortes, que somam mais de 600 mil, as perdas financeiras e humanas somadas a escassez das relações, implicaram em uma afetação na saúde mental de todas as pessoas que vivenciam o período de pandemia, que apesar de preexistentes ao momento que se enfrenta, os sintomas de estresse, ansiedade, pânico e depressão acometem estimativa significativa da população.
Estima-se que, de acordo com pesquisas realizadas pela USP, cerca de 63 % da população brasileira apresenta casos de ansiedade e 59 % de depressão, o estudo apontou ainda, que o Brasil está em primeiro lugar no ranking dos países que mais sofreram com as restrições, desemprego e o isolamento social durante a pandemia, reforçando que o cenário pandêmico tem se mostrado um evento traumático para além das pessoas que já sofriam com algum histórico de desordem mental.
O acesso à saúde é um dos direitos fundamentais intitulados na Constituição Federal e, sendo negligenciado, viola os direitos humanos. Sabe-se que, a atual conjuntura da política do país não estabeleceu uma estratégia de capacitação nacional para que a população fosse amparada dos efeitos de momentos catastróficos como o enfrentado pelo Brasil, sendo certo falar que a população brasileira é desvalorizada e não assegurada da garantia de um direito de segunda geração conquistado, ou melhor, de todas as gerações pois está relacionada à simbiótica da pessoa humana e aos direitos sociais: o direito à saúde.
Isso porque, a lei 10.216/2001, que disciplina diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, completou neste ano duas décadas de regência, contudo, não foi realizada uma reforma na referida lei que pudesse consubstanciar os serviços extra-hospitalares. Ao que se nota, é possível prever que a população acometida por transtornos psicológicos ocasionados pelos traumas da pandemia tenha um período de acompanhamento especializado maior do que a própria pandemia e aos prejudicados que desejam reverter a condição de prejudicialidade da saúde mental socorrem-se do setor privado de saúde, contudo levando em consideração que a economia do pais também experimentou os efeitos da pandemia, mais da metade dos brasileiros não possuem condições financeiras de custear um tratamento psicológico.
É possível perceber que não houve nenhum financiamento contumaz, tampouco políticas públicas para enfrentamento dos efeitos psicológicos motivados pelo período pandêmico. Vários foram os momentos de preocupação com a declaração de uma pandemia possível desde a promulgação da referida lei, contudo, nenhum planejamento para cobrir a lacuna da legislação sobre um plano de contingenciamento para períodos de catástrofes foi colacionado.
Muito embora o Sistema Único de Saúde disponibilize o acesso à atendimento psicológico através da lei 10.216/2001, a sua redação não determina atendimento em saúde mental de situações de pandemia e, mesmo com tantas campanhas de enfrentamento da doença e a mobilização de todos os canais de veiculação, as atitudes governamentais e o desfinanciamento na rede de saúde infere-se que as fragilidades da saúde pública ainda permanecem enraizadas na forma de gestão das autoridades governamentais.
É razoável prever a intensificação do sofrimento psíquico quando não há resultados em ações preventivas e sequer avanços e possiblidades de resposta às necessidades em saúde mental da população, notadamente, a reforma do setor deveria ser pauta no Congresso Nacional, porém, diariamente é possível perceber que esta não é a preocupação das autoridades.
Nota-se, uma necessidade nímia de aperfeiçoamento da lei em comento. A pandemia ocasionada pelo coronavírus foi protagonizada por vivências traumáticas, perdas e lutos e despedidas inesperadas, despertando uma profunda tristeza em todos que vivenciaram o período. Não se deve aceitar que a legislação se limite a apenas melhorar e tornar mais acessível os serviços de atendimento especializados à saúde mental.
É, precisamente necessário, ampliar o campo de competência para atender a uma série de problemas e necessidades psicossociais da população sem deixar de considerar as nuances do período pandêmico, adotando medidas de intervenção adequada para prevenção das enfermidades psicossociais e de controle de todos que experimentaram os frutos da calamidade vivida pelo mundo, de modo que além de prever um controle eficaz e serviços de apoio emocional e psicológico, torna-se forçoso que a lei conte com a possibilidade de atendimento amplo das pessoas afetadas, além de prever planos de recuperação psicossocial de médio e longo prazo.
O acesso à saúde é direito basilar, que deve estar disponível a qualquer cidadão, pois está inteiramente ligado a dignidade da pessoa humana e, cumpre ao Estado assegurar que todo ser receba todos os cuidados adequados para a prevenção, controle e recuperação dos transtornos psicológicos e das vulnerabilidades psicossociais, que afetam inteiramente todas as relações daquele que vive no meio social, econômico, cultural e político.
José Santana Junior é advogado especialista em Direito Médico e da Saúde e sócio do escritório Mariano Santana Sociedade de Advogados