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Na fila

Duas notícias, aparentemente distintas entre si, revelam uma das faces mais brasileiras da civilidade.

A primeira é a onda de militarização das escolas públicas. A proposta  alegrou pais (e muitos professores), crentes de que o que falta para a Educação do país deslanchar é alguém pra colocar essa moçada em fila e exigir disciplina e obediência, em nome do amor à Pátria, que, como sabemos, tem como bandeira a exigência da ordem para viabilizar o progresso.

O governo federal investiu em propaganda e os governos estaduais aliados embarcaram na empreitada, aprovando as leis necessárias em suas Assembleias, para promover essa “transformação” na Educação brasileira. Agora – dizem seus arautos – os jovens vão aprender seus deveres para com o país e não apenas direitos, “porque o problema do Brasil é o excesso de direitos”, lembrou outro dia o líder do presidente no Congresso. Os benefícios sociais devem ser  resultado do esforço e do mérito individuais e não serem dados de mão beijada. Tudo exige ordem. Todos devem saber entrar e permanecer na fila.

O antropólogo Roberto da Matta disse, em livro recente, que nada é mais democrático do que a fila. O seu princípio é um só: o tempo de chegada. Pode ser branco, preto, rico, pobre, poderoso ou humilde, a fila iguala a todos. E nela, também, exerce-se o fundamento mais sofisticado da igualdade: a isonomia. Se a fila exige de todos uma espera para serem atendidos, aqueles que, por idade ou deficiência, não são capazes de esperar tanto quanto as pessoas jovens e saudáveis, devem ter seu tempo de atendimento reduzido. No mais, respeito à fila é um dos maiores sinais do estágio civilizatório ao qual uma comunidade é capaz de chegar.

Essa afirmação seria um forte argumento para defender as escolas “cívico-militares”, pois ensinar jovens a ficar na fila, a esperar na fila, a obedecer em fila, a seguir em fila, é, portanto, um ganho civilizatório para toda a sociedade. Palmas e gritos de euforia. 

Mas não é bem assim. Para Roberto da Matta, a fila é a coisa mais odiada que existe no Brasil, justamente porque impede que a superioridade se revele e, com ela, a inveja que acarreta aos que precisam continuar nela. Afinal, quem não saliva de desejo diante dos avisos nos aeroportos liberando a entrada para o início do voo para os portadores de cartões diamante ou passageiros de primeira classe e classe executiva? Por outro lado, quem não se sente quase imortal por conhecer o porteiro da boate e poder passar pela longa fila de convidados esperando no tempo, levando consigo dois ou três admiradores para passar na frente de todo mundo? 

A fila, diz o antropólogo, é o destino de quem não é capaz de preencher de conteúdo a frase “você sabe com quem está falando?”. Ao contrário do lugar da igualdade, a fila é a expressão dos desiguais, pois só eles precisam ficar nela. Quem se destaca, quem pode, quem manda, vai pro camarote no elevador privativo, sem se misturar com o “público”. 

A outra notícia é a dos fura-filas da vacinação contra a Covid. Mal começou o processo de imunização – já que tão poucas vacinas foram disponibilizadas pelo governo federal – e os poderosos, filhos de poderosos, esposas de poderosos, amigos próximos de poderosos se apresentaram para ocupar o lugar dos médicos e médicas da linha de frente, em nome de um interesse ainda maior do que o interesse de todos: o deles próprios. As justificativas são várias e todas grotescas, porque não há mesmo uma necessidade tão grande em justificar o que é corrente no país, isto é, sua cultura de que ordem é pra quem deve obedecer. Quem manda não precisa ser cívico. Quem não tem nada a não ser aqueles direitos previstos lá na Constituição, precisa aprender a ficar na fila, em ordem, esperando sua vez chegar, se chegar. Daí a ideia das escolas cívico-militares. 

E depois dizem que o governo não tem projetos para o país.

 

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo. 
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros