O preconceito que condena

Por Marcelo Aith

image_pdfimage_print

 

O programa Fantástico da Rede Globo trouxe mais uma história de injustiça cometida pelo Poder Judiciário brasileiro contra um jovem preto e periférico. Infelizmente, Carlos Edmilson da Silva é mais um dentre muitos jovens pobres, pretos ou pardos, que tem suas vidas destruídas por uma investigação mal conduzida e por um Poder Judiciário negligente, que dá maior evidência à voz da Polícia e do Ministério Público.

Carlos Edmilson viu sua vida mudar após uma prisão pelo cometimento do crime de furto na cidade de Barueri, região metropolitana de São Paulo. A partir daquele momento seus dados, como “criminoso”, passaram a constar do cadastro da Polícia. Ficou pouco tempo preso pelo crime de furto. Em liberdade, foi acusado e preso pelo estupro de quatro mulheres, ocorridos entre os anos de 2006 e 2007, novamente na região de Barueri. Ficou três anos preso até que um exame de DNA comprovasse que ele não era o autor daqueles crimes.

Ocorre que a sequência de injustiças não para por aí. Entre os anos 2010 e 2012 houve uma série de estupros na região de Barueri e Osasco, e, novamente, Carlos Edmilson foi apontado como autor dos crimes. Com base em um reconhecimento fotográfico, ele foi condenado a mais de 170 anos de prisão.

Após doze anos preso por um crime que não cometeu, correndo os riscos de quem é acusado de crimes sexuais, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, na última terça-feira (14), acolheu o recurso da defesa e colocou Carlos Edmilson em liberdade, uma vez que, novamente, o material genético (DNA) encontrado nas vítimas não era dele.

Instado a se manifestar sobre os fatos que seriam apontados na reportagem do Fantástico, o Tribunal de Justiça de São Paulo declarou que os juízes têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos processos e “seu livre convencimento”, reforçando que “Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente, como ocorreu no caso”. Ou seja, o Tribunal de Justiça lavou as mãos e não reconheceu que houve um erro judiciário na hipótese.

Para além disso, não se olvida que o juiz tem independência funcional, mas essa independência é limitada. Não pode, no mundo ideal, o magistrado condenar qualquer indivíduo, por qualquer crime, sem que o órgão acusador tenha provado suas alegações.

O sistema processual brasileiro adota, como regra, o sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional. A liberdade do magistrado não é plena, uma vez que não pode substituir a prova por meras conjecturas nem mesmo por sua opinião sobre os fatos ou sobre o acusado.

Em um processo penal ideal, o órgão de acusação deve apresentar uma hipótese acusatória e, com ela, os elementos probatórios correspondentes. Ademais, há que ser possibilitado a defesa apresentar contra-hipóteses e contraprovas. Sendo que, ao final, o julgador, diante do conhecimento atômico dos elementos apresentados (e não holístico), e da valoração sobre eles, emita sua decisão de maneira racional e imparcial.

No entanto, no mundo real a história é diferente. Os julgadores, afastando-se do mister constitucional, invariavelmente se fiam exclusivamente das hipóteses acusatórias e nos escassos elementos de prova apresentados pela acusação, escanteando as teses defensivas, alegando para tanto o mantra do “livre convencimento motivado”, tal como o Tribunal de Justiça lançou em sua nota.

Segundo Gustavo Henrique Badaró, partindo-se de uma concepção racionalista, de que a decisão deve se fundar num método de corroboração de hipóteses fáticas (com base na prova produzida, e não na crença do julgador), o que importa é se a proposição fática está suficientemente corroborada – e não falsificada por hipóteses contrárias ou diversas – para ser tida por provada. Logo, o processo de valoração serve para verificar se as hipóteses fáticas estão ou não confirmadas pelas provas, e não para gerar uma crença no julgador.

No caso trazido pelo Fantástico, Carlos Edmilson foi condenado diante do reconhecimento fotográfico realizado pelas vítimas. No entanto, conforme ficou evidenciado posteriormente, havia material genético que poderia ser utilizado como elemento de prova para confirmar se, de fato, Carlos era o autor do crime. Graças ao trabalho do “Innocence Project Brasil” foi possibilitada a produção do exame de DNA que demonstrou, cabalmente, que Carlos não era o autor dos estupros.

No entanto, fica a pergunta, se havia material genético para demonstrar se Carlos era ou não autor do crime, por que o Ministério Público não produziu essa prova cabal? Por que o Poder Judiciário paulista se contentou com o reconhecimento fotográfico? A resposta é simples: porque Carlos Edmilson da Silva era, na época do julgamento, um jovem, preto, pobre e periférico, portanto, estigmatizado pela cor de sua pele e pela sua condição econômico-social, fato que ocorre não raras vezes nos tribunais brasileiros. Quando isso vai acabar? Quando o Poder Judiciário irá julgar racionalmente o processo penal? Quando o Poder Judiciário irá julgar analisando os fatos e as provas, e não as pessoas acusadas? Quando esse preconceito terá fim?

 

Marcelo Aith é advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca.

 

 

 

Botão Voltar ao topo