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Onde nascem os meus monstros

Quando Clarice estava indo para o hospital, na sua derradeira viagem, pediu para a amiga Olga que imaginasse com ela que o caminho que percorriam tivesse o aeroporto como objetivo e que o destino final fosse Paris. Até o motorista embarcou na aventura e foi incluído na trupe. Era mais “uma história verdadeira embora inventada”, como Joana ou Macabéa, que nunca existiram mas nunca deixarão de existir. O pensamento criativo, que traz ao mundo pedaços decifráveis da imaginação, sempre cercados pelas garras pontiagudas do real, dá vida a avatares que incorporam nossa existência mais doída, com a intensidade de um soco na cabeça, como lembrava Kafka.

Eu, por exemplo, não consigo mais separar a reflexão sobre os muitos fatos que me afetaram na vida das referências de meus autores de predileção, com seus textos que me deixaram cicatrizes indeléveis. As chaves que decifram as coisas que não dou nome aparecem em parágrafos descritivos, versos esparsos ou estribilhos de uma canção antiga, diálogos entre personagens secundários de um conto curto, fluxos de consciência, intervenções de narradores pouco confiáveis. Meus livros têm as marcas nervosas do meu lápis, ora sublinhando, ora apontando com uma seta e muitas vezes fazendo um círculo no texto e escrevendo ao lado: “usar”.

Esse bric a brac emprestado da criatividade dos outros, não considero expressão de  falta de personalidade, mas condição para construir alguma personalidade que eu possa chamar de minha. Se eu dependesse só das minhas palavras para traduzir o que sinto, seria o mestre dos grunhidos e das caretas, um afásico contumaz. A minha sorte é a capacidade dessa gente tão talentosa em externar sofrimentos e desejos, arrependimentos e esperanças, em suas crônicas, contos, romances, poesias. Bebo da água que vem dessa montanha de talento e que chega fina, rala, na manilha ao pé da serra, espalhando gotas que saltam para todos os lados, eu ávido, a água sorrateira. Mas minha persistência e minha necessidade acabam por matar minha sede de compreensão, até que outra dúvida me assalte, em uma espiral que desaparece nas nuvens.

Certa vez, há vários anos, eu estava numa das ruelas da cidade de Paraty, ouvindo pelo alto falante um papo de um jornalista com o poeta Ferreira Gullar, quando ouvi, da voz que saia ainda mais anasalada pela caixa de som, sua famosa máxima: “Eu faço arte porque a vida não basta.” Embora depois eu tenha revisto essa frase em muitos lugares, foi ali, numa manhã despretensiosa, quando eu me programava preguiçosamente para as atividades do dia, entre as tantas que o Festival Literário proporciona, que fui impactado pela primeira vez pela síntese do escritor. Fiquei cismando, sabendo que uma chave fora encontrada para dar-me respostas sobre meus fantasmas sem nome. Não só os fantasmas do momento, mas os que já me acompanham desde a adolescência, frequentes e incorrigíveis na burla, a bagunçar meus esforços por coerência e por um mínimo de precisão na vida. 

Não faço ideia de onde nascem os monstros que me povoam. Meus esforços recentes têm sido o de buscar seus esconderijos mais recônditos, com o objetivo de decifrá-los ou ser devorado por eles. Mas tudo tem sido infrutífero até então, creio que pelo fato de eu ter tentado até aqui uma arguição lógica, direta, em busca de uma resposta clara. Não faz muito tempo que comecei a perceber que esse é um caminho inútil. A saída, Gullar já havia me dado. Ou como já disse outro poeta: “A lição, nós sabemos decor. Só nos resta aprender”. Meus monstros não são de verdade. No entanto, eles existem. Como Perseu diante da Medusa, preciso de um meio que (re)presente meu olhar para que eu tenha a chance de enxergar sem ser congelado, petrificado pela revelação que não deixa margem nem tempo de fuga. Afinal, não quero ir para o hospital. Quero ir, sempre, para Paris.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo