“Pensar e gerar um mundo aberto”
Por Lino Rampazzo
Há algumas semanas recebemos uma significativa mensagem de paz e de fraternidade. Trata-se da encíclica “Fratelli tutti’ (todos irmãos), do Papa Francisco, “sobre a fraternidade e a amizade social”. O documento está dividido em oito capítulos, sendo o primeiro “as sombras de um mundo fechado”. Quais são essas sombras?
Eis uma triste “lista”: o egoísmo, a falta de interesse pelo bem comum; a prevalência de uma lógica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte; o desemprego, o racismo, a pobreza; a desigualdade de direitos e as suas aberrações, como a escravatura, o tráfico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois forçadas a abortar, o tráfico de órgãos…
Mais especificamente esse capítulo fala de “sonhos desfeitos em pedaços”. Quais foram os “sonhos”? Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração. Pense-se no sonho de uma Europa unida, capaz de reconhecer raízes comuns e regozijar-se com a diversidade que a habita; ou no anseio duma integração latino-americana (N. 10).
Mas no mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade. Reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco (n. 30).
O livro do Eclesiastes afirma que “nada há de novo debaixo do sol” (1,9). Nesse sentido, podemos recorrer à história, que nos ensina sobre a época em que viveu São Francisco de Assis (1181-1226). Similarmente havia muitas divisões, inclusive uma guerra de cristãos contra islâmicos: a “quinta cruzada” (1217-1221). Mas o santo escolheu um caminho diferente. Eis como o Papa Francisco relata esse fato na encíclica citada:
“Na vida de São Francisco, há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos….Sem ignorar as dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes ‘entre sarracenos e outros infiéis (…), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus’. No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma ‘submissão’ humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé” (N. 3).
Com esse mesmo espírito, num dos seus escritos, São Francisco criou a expressão “Fratelli tutti” (todos irmãos) para propor uma forma de vida com “sabor a Evangelho”. E o Papa Francisco intitulou a encíclica com essa expressão de São Francisco, dirigindo-se a todos os homens de boa vontade, para “fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade” (N. 8).
A partir da parábola do Bom Samaritano, o Papa afirma que “o amor constrói pontes e nós somos feitos para o amor”. Por isso precisa “pensar e gerar um mundo aberto”, promovendo a “cultura do encontro”, aberto ao mundo inteiro, inclusive aos migrantes, desenvolvendo uma “política melhor”, que representa uma das formas mais preciosas da caridade, porque está a serviço do bem comum e conhece a importância do povo.
O Papa chega até a citar um brasileiro, o poeta e cantor Vinícius de Moraes quando, no “Samba da Bênção”, afirma que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida” (N. 205). E nos percursos de um encontro, o Papa sublinha que a paz é “proativa” e visa formar uma sociedade baseada no serviço aos outros e na busca da reconciliação e do desenvolvimento mútuo, até valorizando o perdão. Perdão, ele esclarece, não significa impunidade, mas justiça e memória, porque perdoar não significa esquecer, mas renunciar à força destrutiva do mal e da vingança. A encíclica termina mostrando que as Religiões devem colocar-se a “serviço da fraternidade no mundo”.
Os cristãos, juntamente com todos os homens de boa vontade, são chamados a construir um mundo diferente, que supere as divisões políticas, sociais, econômicas, religiosas e culturais.
Lino Rampazzo é doutor em Teologia e coordenador do curso de Teologia da Faculdade Canção Nova (Cachoeira Paulista-SP).