Por que é preciso condenar o discurso do deputado Nikolas Ferreira

Por Daniel Medeiros

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No pior momento da história da Alemanha, o governo representava a ideia de que as pessoas poderiam ser criminalizadas pelo fato de serem quem elas eram: judeus, homossexuais, com deficiência, entre outros. Esse estado de violência extrema, baseado na criminalização do Ser, também marcou a História trágica de outros países, todos ditatoriais, liderados por assassinos. Como não esquecer do genocídio dos Armênios, o Holodomor,  ou o que se passou em Ruanda? 

As democracias se oferecem como o regime político que repudia radicalmente essa prática, definindo como crime passível de punição pelo Estado o Ter de maneira ilegal ou o Fazer ou Não Fazer de maneira ilegal. Mas nunca o Ser. 

No entanto, foi exatamente esse o teor da condenação pública – no púlpito da Câmara dos Deputados – que um parlamentar fez no dia 8 de março de 2023: afirmou que uma pessoa do sexo masculino que “se sente mulher” “quer impor uma realidade que não é uma realidade”. Com essas palavras o deputado definiu qual realidade é admissível e qual não é. E a que não é admissível, na opinião dele,  é a que inclui as mulheres trans. E que o fato de elas existirem é um “perigo”.

Ora, conjecturemos: como se combate “um perigo”? Com proibições. Primeiro, proibição de participar de competições esportivas. Depois, proibição de usar banheiro feminino. O que virá em seguida? Qual o limite desse enquadramento das mulheres trans em uma realidade que é ditada pelos homens cis? 

Quando uma pessoa faz algo previsto como crime, o Estado deve agir em favor da sociedade, investigando, julgando e, comprovada a responsabilidade, punindo na forma da lei. Omissões, igualmente, podem ser caracterizadas como crime. Ter algo ilicitamente, mesmo que sem dolo, também pode ser tipificado como uma agressão ao Estado e à sociedade. Mas como é possível criminalizar o que a pessoa é? Uma mulher trans é uma pessoa que nasceu com o sexo masculino mas que não se reconhece íntima, social e culturalmente como homem. O que fazer? Viver essa clausura e esse sofrimento porque há, na sociedade, pessoas incapazes de compreender a diversidade humana? Por que há pessoas que acreditam poder classificar quais os critérios que valem e os que não valem para definir quem as pessoas são? Então, o biológico vale para definir as pessoas trans como “uma realidade que não é uma realidade”, mas não vale para questionar, por exemplo, a ressurreição de Lázaro ou a transformação da água em vinho da tradição religiosa cristã? Qual é o momento no qual “é adequado” virar a chave e eleger o biológico como referência e depois virar para o outro lado e ignorar a mesma Biologia? Não seria coerente respeitar todos os campos do conhecimento humano, tanto o biológico como o religioso e o antropológico, sem que se possa usar um ou outro somente quando for conveniente para os interesses…eleitorais?

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Isso é um fato.  As estatísticas nacionais e internacionais demonstram e comprovam. Quem mata, mata não porque a pessoa trans fez algo ou tem algo ilegal em seu poder, mas porque é algo que se considera ilegal, ou imoral, ou pecaminoso, ou seja o que for, mas que gera o desejo de eliminar, afastar o “perigo”.  Como é fácil perceber, quem corre perigo nessa equação violenta? O deputado que foi à tribuna no dia 8 de março, dizendo proteger as mulheres que correm risco com esses “homens que se sentem mulheres”, já viu essas estatísticas? Sabe delas? Creio que sim, até pelo cargo que ocupa, tem assessores que devem informá-lo disso. Mas considera que está prestando um serviço às mulheres, principalmente as atletas – como se elas próprias não pudessem manifestar suas opiniões individualmente ou por suas categorias esportivas, associações e confederações – apontando o dedo para as mulheres trans e chamando-as de “um perigo”. Como se esse alerta não fosse endereçado para as mulheres supostamente “prejudicadas”, mas como um chamamento aos homens de bem – como o próprio deputado se considera – para agirem e eliminarem esse “perigo”.

Sobre o pior momento da História da Alemanha, todos sabemos os desdobramentos. E tudo começou com alguém dizendo que estava protegendo o povo alemão, o “verdadeiro” povo alemão da ameaça daquelas pessoas que tentavam roubar seus empregos e suas economias. Pessoas que não deveriam estar ali. “Uma realidade que não é uma realidade.” E que hoje povoa a consciência do mundo civilizado com seus seis milhões de gritos de horror.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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