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Um país decente

Quando eu era bem jovem, convivi, no meu dia a dia, com pessoas muito pobres. Os mais pobres de todos eram os flagelados fugidos do semiárido que, de tempos em tempos, chegavam à  cidade e espalhavam-se pelas calçadas próximas das feiras, dos mercados, bares da praia ou qualquer outro lugar onde houvesse a chance de conseguir água, comida ou algumas moedas. Como morávamos em uma casa de esquina, vez por outra ouvíamos as batidas de mão que, no Nordeste, ainda fazem às vezes da campainha. Minha mãe ia ver o que era e, quando os via, voltava para dentro da casa e pegava água, frutas do quintal ou fazia café com leite para eles. Eu ficava na área da frente da casa, olhando para aqueles corpos cinzas de homens e mulheres quase iguais na sua magreza, nos cabelos desgrenhados e nos olhares fundos, mas, principalmente, nos pés gretados, enormes, caindo pelos lados das sandálias gastas e sujas. Mamãe não falava nada, não dizia palavras de consolo, apenas entregava as coisas com um breve “é o que temos” e entrava, chamando-me com os olhos. O grupo comia, bebia e deixava os copos e vasilhames sobre a murada e partia também sem maiores falatórios. Era um episódio como outro qualquer, sem reflexões ou discursos domésticos. Meu pai chegava do trabalho, mamãe fazia a janta e comíamos, de banho tomado e roupas limpas, sem noção ou consciência de que lá fora a escuridão era a casa de tanta gente.

Na rua lateral à minha casa, que percorria o longo muro de um educandário, havia a entrada de uma grande favela, o que fazia de nós pessoas de posses naquele contexto no qual diversas camadas de pobreza se sobrepunham. Mas, só muito tempo depois, é que fui entender essa nossa condição, e aprendi a respeito de direitos e privilégios. Minha família estava dentro do círculo dos direitos – alimentação, saúde, educação, moradia, transporte. Os meus colegas da favela, com quem jogava bola, empinava papagaio e atirava pelotas de mamonas nos calangos que descansavam ao sol sobre os muros do educandário, viviam na interseção entre o mundo dos direitos e dos não direitos. E aqueles que apareciam de tempos em tempos, esses viviam no mundo do não direito de coisa alguma. Minha família ficava de pé, embora se cansasse bastante; os favelados caiam e levantavam, caiam e levantavam; os flagelados viviam “em cova medida”. 

Passei boa parte da minha infância sem conhecer ninguém com privilégios.  Saía de casa apenas de shorts de tecido comprado na feira, feito pela minha mãe, pés no chão, e ia brincar. Todos os meus amigos eram assim ou quase assim. Uma vez por ano, meu pai comprava roupas para nós. Pra mim, duas calças, três camisas e um sapato. Pagava no crediário, em doze vezes. A escola, pública, tinha uniforme. E era só. Lembro que somente uma vez meu pai comprou livros, a enciclopédia Delta, edição de 1969, que servia para tudo. Outra vez, muitos anos depois, ele montou uma coleção de fascículos comprados nas bancas de jornais, sobre bichos. Meu pai sempre foi fascinado por animais. Nunca saímos para jantar fora. Nunca viajamos de férias, exceto uma vez, aos doze anos, quando fui com a minha mãe visitar minha avó em Paranaguá. Outra vez que viajamos, foi quando nos mudamos para Curitiba e eu já tinha 17 anos. Viemos de carona no avião do Correio Aéreo Nacional.

Creio que foi somente quando vim para Curitiba, no início dos anos 80, onde estudei pela primeira vez em uma escola particular, que conheci essa realidade das pessoas “portadoras de privilégios”. Conheci porque ela foi impressa em mim, na minha diferença de jovem de classe média baixa, com apenas duas calças e três camisas, que eu alternava como podia, mas que, ao fim do primeiro mês, já estava suficientemente manjada para despertar os comentários maldosos dos meus novos “colegas”. Como minhas duas calças eram iguais, achavam que era uma só e zombavam de mim, dizendo que eu não as lavava. Para piorar, tive uma descamação do couro cabeludo por causa da água quente, o que ajudou muito na narrativa de que eu era um pobre sujo. Meu sotaque nordestino imediatamente valeu-me o apelido de “Ceará”, e só na universidade – onde tive a companhia de apenas um amigo desses tempos, que nunca abandonou o apelido – pude voltar a ser chamado pelo meu nome de batismo. 

Minha primeira reação a esse novo mundo foi de uma imensa raiva. Depois, aos poucos, fui trocando esse sentimento por um misto de sarcasmo e ceticismo. Por fim, ficou apenas uma indiferença forçada, marcada pelo esquecimento completo de todas as pessoas com as quais convivi nos anos finais do Ensino Médio. Não guardei nenhum nome e nenhum rosto. Só o aprendizado da miserável e privilegiada existência deles.

Hoje, homem feito, tropeço com os pobres das calçadas no trajeto entre meu apartamento em um bairro central da cidade e meu trabalho. Costumo dar os trocados que levo comigo e, muitas vezes, recuso os doces, as balas e os pedidos de ajuda, fazendo o cálculo mental de que “já ajudei ontem ou essa semana” e que, portanto, estou em dia com minhas obrigações de solidariedade. Pertenço ao borrão ético que é a face mais reconhecível do meu país, aquele que diz: “não sou responsável por isso, pago meus impostos e voto em candidatos progressistas. Sou uma pessoa legal”. E sigo em frente.

Os pobres dessa cidade não são como os flagelados de minha infância, Fabianos e Sinhás Vitórias em pouca carne e muito osso que ainda assombram a minha memória. Mas esses pobres de meu trajeto diário perpetuam a herança da exclusão atroz da sociedade e dos governos que se enfileiram década após década, incapazes de atender os direitos mais básicos das pessoas. Eu caminho, há mais de meio século com a imagem desses pobres na minha paisagem, com a presença pungente deles a impregnar minha retina, com os detalhes de seus corpos rudes e maltratados a lembrar-me que o processo civilizatório do qual faço parte como usuário traz uma promessa não cumprida: a de fazer deste país um lugar decente. Na verdade, essa promessa quase nunca foi feita pra valer. Já foi dita, é verdade, em momentos raros de nossa história. Mas está tudo como dantes no quartel das boas intenções rasas e infrutíferas. 

Desse fracasso escandaloso, dessa lacuna vergonhosa, todos somos parte, como autores ou como cúmplices. Eu sou. O flagelado que bate palmas no portão da casa de minha infância é a minha dívida não resgatada.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros