A Natividade
Por Daniel Medeiros
Admiro profundamente a ideia que há na comemoração do dia 25 de dezembro. Comemorar é um lembrar juntos de algo que aconteceu. Nesse caso, algo que surgiu e, com ele, a possibilidade de uma mudança. Porque essa é a essência do nascimento: a irrupção de um novo que não estava aqui e que, com a sua existência e sua presença, torna o mundo irremediavelmente diferente do que era, capaz de conexões e arranjos novos e imprevisíveis. “Jesus nasceu! Jesus nasceu!” E nunca mais fomos os mesmos.
Nesse sentido, a festa pelo nascimento é o contrário da tradição, que prima pela existência das coisas e sua manutenção. Um verdadeiro paradoxo: muitos olham horrorizados, com os rostos se mexendo da direita para a esquerda, em uma reprovação muda a tudo que é diferente. Ou então exclamam, afogueados: “por Jesus Cristo!”
Chega a ser engraçado.
Pois o Jesus nasceu para mudar, para trazer algo que não havia no mundo antes e só por isso o mundo não foi mais o mesmo após a sua passagem. Esse é o milagre que ele compartilhou com o pão, com o vinho, com a festa, com a defesa dos pobres, das prostitutas, dos doentes, dos desvalidos. Para o pescador Simão, disse: tu és pedra e sobre ti erguerei a minha igreja. Para o ladrão que foi pregado ao seu lado, encorajou: ainda hoje estará comigo no paraíso. Para os que julgavam o comportamento alheio, sem corrigirem seus próprios defeitos, provocou: que atire a primeira pedra. Isso não havia e passou a existir. Esse nascimento de um novo jeito de olhar e de viver e de pensar a eternidade, Jesus trouxe aos homens e mulheres para que eles, igualmente, tivessem a oportunidade de um renascimento. Pois, a cada momento, cessamos e reiniciamos nossa vida e temos a oportunidade de deixarmos de ser como éramos, passarmos a ser e a inspirar outras pessoas.
A cada instante, nascem pessoas no mundo e, em cada uma, o milagre da singularidade se repete, o potencial de uma cura, de uma obra prima, de uma alegria inesquecível. Jesus, como sabemos, nasceu apesar das circunstâncias que o cercavam, desafiando-as. Como se pudéssemos dizer: “se fosse pra seguir a lógica, não teria sobrevivido”. Essas são as razões para admirar o seu nascimento. Como lembrou João Cabral de Mello Neto, sobre outro nascimento, enquanto o mestre carpina ouvia o desespero de Severino:
“Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?”
E diante desse milagre, pois todo surgir é um milagre com a potência da esperança, mestre carpina responde ao sofrido Severino, que pensava em saltar da ponte da vida:
“(…) se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.
E não há melhor resposta que o espetáculo da vida…”
2020 também já quase se vai e o quanto sofrido foi para as famílias das duzentas mil pessoas que partiram, muito pela inclemência da doença, muitas pela insensatez da teimosia e da ignorância, muitas pela negligência e maldade dos governantes. Mas um novo ano vai nascer. Um ano que nunca existiu antes, cheio de possibilidades inteiramente novas, convidando cada um de nós a também refazermos nossa jornada. Como disse outro poeta, Ferreira Gullar: “caminhos não há, mas os pés na grama os inventarão. E aqui se inicia, a viagem clara, para a encantação”.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros