Dilúvio de estupidez
Por José Renato Nalini
Nestes dias em que o Brasil se polarizou, num confronto insano entre esquerda e direita, é interessante resgatar o conteúdo de debates já travados em período histórico ainda recente.
Costumamos dizer que após a queda do muro de Berlim, em 1989, acabou a divisão entre vermelhos e verdes, ou entre vermelhos e azuis. Com isso, descansamos e podemos concluir que a humanidade encontrou uma terceira via, o humanismo integral que só tem por interesse fazer com que a universalização dos direitos humanos – aspecto meramente quantitativo – se concretize sob a forma de efetiva fruição – aspecto qualitativo.
Convém aos mais jovens a leitura de dois gigantes do pensamento brasileiro, que se digladiaram por nutrirem posições antípodas em relação à convivência entre democracia e socialismo. Falo em Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde e em Gustavo Corção. Ambos católicos, mas em vertentes díspares ao encarar o que aproxima o ser humano de sua transcendência e o que o afasta desse encontro definitivo com o imponderável.
Leio “O Século do Nada”, de Corção, contundente, eloquente e preocupante. A ortodoxia de Corção está até na escolha das epígrafes aos capítulos de sua obra. A parte I é antecedida por um texto de Pio X, hoje São Pio X, o “Papa da Eucaristia”, na Encíclica “Supremi Apostolatus”: “Pode alguém ignorar a doença profunda e grave que nestes tempos, muito mais do que no passado, devasta a sociedade humana e que, dia a dia agravada, a corrói até a medula e a arrasta à ruína? Essa doença é o descaso de Deus e a apostasia; e nada, sem dúvida alguma, leva mais depressa à ruína, segundo esta palavra do Profeta: “Eis que perecerão os que se afastam de Vós”.
Quando se verifica a situação a que foram levados Países que adotaram o socialismo tardio, como a Venezuela, não é difícil concluir que um povo temente a Deus não chegaria a tal extremo de menosprezo à dignidade do homem. Consumir carne podre, alimentar-se de cães, enfrentar o retorno de enfermidades já debeladas, tudo numa Nação rica, ainda a explorar o combustível fóssil mais poluente, mas também o mais caro deste mundo consumista? Isso é o que se esperava para o Século XXI?
Deixar de considerar a responsabilidade de cada qual para restaurar um convívio fraterno e acreditar que tudo é fruto de uma contemporaneidade liberta de superstições é incrementar o festival de sandices, o dilúvio de estupidez que acometeu o País.
O Brasil já se chamou Terra de Santa Cruz. Tem uma tradição fortemente ancorada na filosofia cristã. E o Cristianismo prestou imenso serviço à civilização, quando tornou cada humano um filho de Deus e, portanto, irmão de Cristo. Mais do que isso, todas as outras filosofias laicas juntas não conseguiram fazer. Que o diga o insuspeito Chaïm Perelman, para quem a “regra de ouro” da Humanidade é o “ama ao teu próximo como a ti mesmo”.
Se não é fácil “amar”, pelo menos “respeitar” o semelhante não é impossível. Ao contrário, é dever fundante, pois está na Constituição de 1988, ora balzaquiana, o supra-princípio norteador da dignidade da pessoa humana. Curvemo-nos a ele.
José Renato Nalini é Reitor da Uniregistral, docente universitário, conferencista e autor de “Ética Geral